Higor 21/03/2024
"LENDO NOBEL": sobre a força desconcertante da ausência
Parece que a Academia Sueca conseguiu, finalmente, alcançar seu ideal há tanto imaginado: desde 2020, após anos de escolhas controversas e de autores que, às sinceramente, sobressaem-se mais por conta de polêmicas que de sua literatura propriamente dita, tem sido elogiada por seus anúncios recentes, se não esperados, ao menos corretos e que, de quebra, trazem novamente o renome e a relevância que a instituição, tida como eurocêntrica, branca e atrasada, tanto precisa para se manter atual, relevante e, principalmente, lembrada.
A escolha de Jon Fosse, por exemplo, foi bastante feliz e esperada pela crítica especializada: trata-se do maior autor norueguês da atualidade e do segundo dramaturgo da história do país, atrás apenas de Henrik Ibsen. Consolidado na Escandinávia em geral, Fosse furou a bolha internacional na virada do século, abocanhando aqui e ali prêmios internacionais importantes. Trata-se, então, de apenas uma questão de tempo até se chegar ao ano de 2023 e sua consequente láurea ao prêmio máximo da literatura.
Acontece que, enquanto Glück (2020), Gurnah (2021) e Ernaux (2022) são consideradas escolhas que agradam, de maneira geral, tanto crítica quanto leitores, Fosse parece não ser um consenso tão unânime, ao menos não para os leitores, que consideram-no senhor de um espiral vicioso ou de um prisma caleidoscópico fosco e desagradável.
Neste "É a Ales", por exemplo, a história se atém em apresentar Signe, uma mulher reflexiva em sua casa, num dia qualquer de 2004, onde se questiona diariamente, desde 1979, sobre a decisão do marido, Asle, em pegar um barco, mesmo em meio a uma tempestade, para nunca mais voltar. Seria culpa dela? Por que ele fez isso? O que ela poderia ter feito, enquanto esposa, para evitar tal atitude tão drástica? Onde estaria Asle agora?
O que aparenta se tratar de apenas mais um livro sobre relacionamentos fadados ao fracasso, "É a Ales" se apresenta, na verdade, como uma elegia sobre a força brutal e angustiante da ausência, não somente de Asle e seu sumiço repentino, mas de tudo o que foi compartilhado e vivido por ambos naquele lugar, naquela casa, escolhida a dedo por Signe, onde "verão é verão, inverno é inverno, primavera é primavera". Fosse ousa e vai mais além, elucidando a ausência de tudo o que se passou quando não se estava presente para acompanhar os fatos no devido tempo.
Foi justamente nessa simplicidade e clareza que o autor, sinceramente, muito me agradou em "Brancura" e agora em "É a Ales", pois a casa, este quadro fixo, esse cenário estático, com poucas descrições e sem muito a agregar com o passar das páginas e das repetições da narração, de repente se expande, ganha novas camadas, graças ao fluxo de consciência e a ausência de uma marcação de tempo, então, presente, passado e futuro se movimentam naquele único espaço, enriquecendo-o de maneira majestosa.
O indizível, a justificativa da Academia para a literatura de Fosse, logo parece acessível, ou de grata constatação, com o entendimento de que a casa deixa de ser apenas o cenário principal, o lar de Signe e de Asle, para se tornar muito maior para cada um deles. Nada é dito, mas a ausência de Asle faz com que Signe veja e reconheça que aquele lugar não é apenas o seu lar, o conforto do casal, ou sua adorada casa, a que ela se refugia, mas possui outras relevâncias e significados; Asle, por exemplo, a visualiza como a resistente morada de seus ancestrais, até sua trisavó, que construiu a casa.
A presença destes personagens unidos no mesmo espaço-temporal fixo, mas ao mesmo tempo vivendo cada um o seu próprio dia de seu próprio ano, é um deleite, pois confirma a eficiência da escrita de Fosse, que se repete, volta com constância ao mesmo ponto, que confunde enquanto se mantém o estado de estática ao focar não na ação, preferindo a reação, mas que atiça a curiosidade do leitor e, mais importante, demonstra que o autor sabe o que quer e onde quer chegar.
Aliás, é justamente o estilo de escrita que desagrada os leitores, mas eu me sinto tão conectado com o autor que, mesmo ocupado com outras coisas, eu sempre pensava em finalizar "Brancura", por exemplo; com "É a Ales", por sua vez, eu não fiz nada até finalizá-lo, para não quebrar o ritmo e poder lê-lo como que em uma apreciação silenciosa de como o autor poderia ser grandioso, mas optou em ser contido e sucinto.
Eu não esperava algo revolucionário ou que mudasse minha vida com a leitura de "É a Ales", e entendo quem se frustrou com o autor, assim como não sei explicar ao certo como ele me fisgou, mas me sinto satisfeito com o que ele me proporciona, com a maneira como brinca com o tempo, e principalmente como me faz refletir em uma narrativa simples, mas assustadora e que eu já me peguei pensando diversas vezes: o lugar que eu estou hoje, como ele era e por quem foi habitado 5 anos atrás? E como estará daqui a 5 anos? Eu ainda estarei aqui? Eu mesmo já fiz o exercício, de maneira divertida e despretensiosa, de olhar no Google Maps como era determinado lugar de minha vida anos atrás, antes de eu chegar e depois de eu ir embora, para ver o que mudou, o que melhorou ou piorou, e resgatar memórias singelas do que eu vivi.
Enfim, "É a Ales" foi uma agradável leitura, que me trouxe conforto e saudosas lembranças, embora eu entenda perfeitamente que ela suscitará tédio e apatia em muitos leitores. Felizmente, ela me proporcionou grandes momentos para pensar, refletir e questionar sobre o passado, presente e futuro meus e de minha família. É preciso ser sensato e admitir que não mudou minha vida, mas me proporcionou muito alento, o que me basta.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Nobel".