Lucas 19/01/2023
Os reflexos do "ontem" que ainda chegam no "hoje": o fim de um projeto que queria (e conseguiu) dissecar quatro séculos de escravidão, mas que explica muito do Brasil de hoje
É com uma chave dourada que o escritor paranaense Laurentino Gomes encerra um trabalho audacioso, de mais de dez anos de pesquisa: relatar numa trilogia de livros os quase quatro séculos da escravidão no Brasil, a maior tragédia humana já vista por aqui. Escravidão: da Independência do Brasil à Lei Áurea cumpre um primoroso papel de fechamento nesse trabalho, que se tornará um símbolo perene de um assunto tão delicado e por vezes esquecido pela sociedade brasileira.
Cronologicamente, este terceiro volume é o que cobre menos tempo: são "apenas" 66 anos entre a proclamação da Independência em 1822 até a simbólica assinatura da Lei Áurea em 1888. Mas, como pode ser imaginado dada a comparação com os outros livros da trilogia (o primeiro, por exemplo, narrava vendas de cativos da África ocorridas antes mesmo do descobrimento do Brasil), neste período mais atual o material de pesquisa é muito mais vasto e isso acaba refletindo no texto, a qual agora traz a impressão de maior detalhismo (isso ajuda a explicar o fato desse terceiro volume ser o que possui mais páginas).
O estilo permanece: com exceção do início e do fim, não é seguida uma linha cronológica rígida. Os capítulos podem ser lidos como ensaios, as quais relacionam-se entre si com alguns acontecimentos ou personagens. Mas avaliando-se os três livros em conjunto, sutis diferenças são aqui percebidas: enquanto o primeiro enfoca mais a crueldade chocante (e real) com grande apego a dados numéricos e o segundo é contextual, descrevendo toda a atmosfera socioeconômica do chamado ciclo do ouro, este derradeiro livro da série lança luz a personagens efetivos, as quais se relacionaram com a escravidão em boa parte do século XIX. Desse modo, muitos dos citados ensaios que compõem os capítulos funcionam como biografias destes personagens, o que, para um amante desse estilo como este que escreve, faz a leitura ser um deleite ainda maior.
Nesse compêndio de personagens, Laurentino os divide claramente em dois grupos: os chamados contrários à abolição da escravatura, notadamente fazendeiros (especialmente do interior de São Paulo na região do Vale do Paraíba, berço dos chamados barões do café) e políticos ligados a este setor; e a casta dos abolicionistas, formados majoritariamente por autônomos (jornalistas, em especial), uma classe média nascente e, com o tempo, alguns políticos não ligados às oligarquias rurais. No meio desse "tiroteio", haviam os próprios escravos, alheios a boa parte das discussões e a Coroa, em especial a figura de Dom Pedro II (1825-1891) e sua filha, a princesa Isabel (1846-1921).
O último monarca brasileiro (e se forem considerados todos os mandatários do Brasil independente foi o que mais tempo ficou com essa responsabilidade, por 47 anos) é descrito por Laurentino Gomes como alguém com várias dissonâncias: se por um lado Dom Pedro II foi um grande literato, amante das ciências, patriota (no sentido puro e não intoxicado desse adjetivo) e estadista, por outro ele sucumbia aos interesses de poderosos, especialmente de uma então nascente elite agrária, a qual ainda hoje possui muita voz e vez no Brasil. Sua veia abolicionista, por isso, era marcado por idas e vindas, lindos discursos e recuos nos bastidores.
Na verdade, o autor não é tendencioso com a monarquia e o tratamento destinado a Dom Pedro II em passagens isoladas por todo o livro é o mesmo dado à sua filha, a princesa Isabel. Talvez a principal protagonista da abolição nos livros de história mais comuns, a filha mais velha do imperador foi quem, na ausência de Dom Pedro II que estava em Paris num tratamento médico necessário para os seus recorrentes problemas de saúde, assinou a Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil na tardia data de 13 de maio de 1888. Recentemente, inclusive, houve certo burburinho e endeusamento da princesa Isabel como uma das únicas responsáveis pela liberdade dos cativos, o que passa muito longe da verdade, conforme Laurentino Gomes comprova. Mas Isabel possui um destaque merecido na obra: o penúltimo capítulo, um dos melhores, é dedicado a ela.
Efetivamente, o processo de abolição envolveu um grande movimento político, com vertentes diplomáticas. Quase que de uma hora para outra a Inglaterra, um dos países pioneiros no tráfico de gente, passou a condenar essa atividade, impondo sérias sanções às nações que ainda praticavam tal "comércio". A pressão inglesa foi o gatilho para que um movimento abolicionista nascesse dentro do Brasil, especialmente a partir de 1830. A abolição foi o final de um processo iniciado muito antes, como a lei Eusébio de Queirós (1850), que extinguia (ao menos no papel) o tráfico de africanos, a lei do ventre livre (1871), garantindo a liberdade de todos os descendentes de cativos a partir da sua promulgação e a lei dos sexagenários (1885), a qual libertou todos os escravos com mais de sessenta anos. Todo este arcabouço legal não era seguido à risca, mas promoveram muitos avanços na abolição total, juntamente com a persistência de grandes abolicionistas (em especial Luiz Gama (1830-1882), negro alfabetizado nascido na Bahia e que recebeu um capítulo só seu neste volume).
O movimento abolicionista, entretanto, possuía inimigos poderosos na sociedade brasileira da época, em especial os grandes latifundiários. Para a manutenção da escravidão, havia todo um apanhado de argumentos: estabilidade econômica, já que o branco não era um "animal de carga" como o escravo e estava inapto a grandes esforços, falta de inteligência e bons costumes dos africanos, a garantia da etnia branca no Brasil, "ameaçada" com a presença dos escravos e presumivelmente golpeada após a liberdade destes, entre muitos outros pontos asquerosos. Valia até mesmo recorrer à ciência, que dizia que negros eram defeituosos e ao "bom" e secular direito de propriedade: se um fazendeiro comprava um "lote" de escravos, ele teria prejuízos econômicos enormes caso a liberdade fosse concedida de uma hora para outra. Libertar os escravos, portanto, era aderir ao recém-nascido comunismo, o que geraria uma desvirtuação de valores sem precedentes na história do Brasil... Mesmo que tudo isso tenha ocorrido há cerca de um século e meio (onde tudo era diferente, de fato), é impossível não se enojar com nossos antepassados.
Por mais que o autor enobreça a data de 13 de maio de 1888, a qual foi um dia de festa nos grandes centros brasileiros, Laurentino explica e disseca que a Lei Áurea foi resultado de um processo longo, que despertou ódios, revelou a influência do poder econômico na política nacional (a queda da monarquia dezoito meses depois está totalmente ligada à abolição dos escravos) e que não promoveu nenhum tipo de integração dos libertos à sociedade. O preço e a influência de tamanhos equívocos estão em nosso meio até hoje... Pessoas são enxotadas de lugares públicos, esbarram em barreiras intransponíveis para acesso a oportunidades, são direcionadas à margem geográfica e literal das grandes cidades, são perseguidas e discriminadas, tudo isso simplesmente em função da cor da pele.
Num país que trata de forma no mínimo confusa a sua memória, Laurentino Gomes tenta pagar uma dívida brasileira: tornar eterna a lembrança de que fomos um país escravista até três ou quatro gerações atrás. E isso não é um acinte à nossa história como nação; é um eterno lembrete, dos erros do passado que reverberam hoje e ainda influenciarão o amanhã. Somos diretamente responsáveis pelo Brasil que as próximas gerações receberão e se não formos capazes de aprendermos com os erros de nossos antepassados, nossos filhos também não desenvolverão essa habilidade. A leitura da trilogia do autor sobre a escravidão abre os nossos olhos para inúmeras questões relacionadas a este dilema e explica muitas das mazelas sociais brasileiras da atualidade, fazendo com que a validade dos seus escritos sobreviva ao tempo.