Vania.Cristina 06/03/2024
Perdoar para se libertar. Mas a verdade precisa ser dita.
Aqui, mais uma vez, Carla Madeira traz personagens sólidos, uma história impactante e uma narrativa poética.
Tudo começa com um narrador misterioso e depois duas faixas temporais que se intercalam nos capítulos.
Na primeira delas temos a história de Vedina a partir do momento que começa o dia e percebe que seu marido Abel não dormiu com ela, acorda o filho de cinco anos e o prepara para a escola. Mas os pensamentos de Vedina estão tomados pela raiva e pela mágoa acumulada, não consegue tirar Abel da cabeça. O menino é agitado e peralta, e vai quebrando coisas e aprontando no caminho para a escola. Vedina, num impulso, abre o carro, larga a criança na calçada no meio do nada e parte, deixando-a para trás.
Imediatamente se arrepende mas a via é de mão única e Vedina tem que enfrentar o trânsito para conseguir retornar. Quando consegue não encontra mais a criança e se desespera. Como se perdoar?
A segunda faixa temporal se passa bem antes, e narra a história dos gêmeos Caim e Abel, filhos de Tonico e Custódia. Eles vivem em Minas Gerais, Tonico tem uma pequena loja e Custódia é uma dona de casa amarga, muito religiosa e reprimida. Não entende o motivo do marido gostar de fazer sexo. Sente repulsa por ele.
Já Tonico é alcoólatra, mas é também trabalhador e apaixonado pela mulher. Tonico está magoado com Custódia pela forma como está sendo tratado e culpa a religiosidade dela. Registrou os filhos com os nomes de Caim e Abel para magoar Custódia. Se arrepende depois, mas não tem mais como reverter. A esposa não o perdoa por isso.
Os nomes bíblicos para Custódia tem um peso enorme, de profecia, e ela passa a vida se esforçando para que os filhos sejam próximos e cuidem um do outro. Mas vive um medo frequente de que algo ruim aconteça entre eles.
Na primeira infância tudo está mais sob o controle da mãe, mas quando começam a frequentar a escola, a diferença entre os irmãos cresce:
Caim se torna cada vez mais comunicativo, Abel calado; Caim cada vez se dá melhor com os estudos, Abel é limitado por sua timidez; Caim amigável e expansivo, Abel obsessivo; Caim se dá bem também nas atividades esportivas, Abel começa a sofrer bullying de um professor; Caim é generoso e empático, Abel centrado em si mesmo e no seu sofrimento.
Com o tempo, a semelhança física entre os gêmeos diminui porque Caim desenvolve músculos e um bronzeado, enquanto Abel permanece magro e pálido.
Na adolescência, Caim é um rapaz generoso e Abel egoísta e cruel. Caim é cheio de vida e Abel é apático, sombrio e desmotivado.
Outros personagens são combustível para a história: Pedro Parede, o agitado melhor amigo de Caim, e as amigas da escola Veneza e Vedina.
Carla Madeira explora as dualidades não apenas com os irmãos gêmeos, mas com boa parte dos personagens: Veneza e Vedina, padre Tadeu e padre Alberto, os professores de matemática Bruno Jardim e Adilson Valente. Um sempre representando a positividade, o equilíbrio, a justiça, o perdão, e o outro a negatividade, a mágoa, a raiva e a opressão.
A mulher forte, íntegra, equilibrada, madura desde sempre, é Veneza. A mãe a deixou com o pai, quando pequena, para viver um grande amor. Veneza não guarda rancor, ao contrário, admira a coragem da mãe e sua busca pelo amor verdadeiro. Não se sente abandonada, embora seja mais próxima do pai, não recusa o contato com a mãe. Faço um paralelo entre Veneza e Dalva de Tudo é Rio. São belíssimas e inspiradoras personagens.
E aqui neste livro estão também temas recorrentes na obra de Carla Madeira, o fluxo da vida e a importância do perdão. Não para o outro, mas para o fortalecimento pessoal e a libertação.
Os personagens sofridos são aqueles que não conseguem perdoar. Custódia e Vedina, por exemplo, não perdoam os pais e os maridos. Por sinal, o arco final de Custódia é um dos momentos mais bonitos do livro.
Outros temas importantes da obra são a sincronicidade, o tempo e a omissão. O que não é dito continua minando as relações.
Acho bom alertar que o final do livro é um dos mais abertos da autora, então não espere ver todas as pontas fechadas.
Enfim, é mais um grande trabalho de Carla Madeira.