Raul Maciel 17/12/2023
"Justo nessa hora um vento se mete pelas árvores, e tudo está tão calado, por conta da hora, que o rumor das folhas cresce como a respiração de um animal enorme. Escute só como respira. Um bufar. Os galhos se mexem como costelas, inflando-se e desinflando-se com o ar que se mete pelas entranhas.
Não são apenas árvores. Nem arbustos.
Não são apenas pássaros. Nem insetos.
O jacurutu não é um gato-do-mato, se bem que às vezes pareça.
Não são uns preás. É este preá.
Esta urutu.
Este caraguatá, único, com seu centro vermelho como o sangue de uma mulher.
Se espicha a vista, descendo a rua, chega a ver o rio. Um brilho que umedece os olhos. E de novo: não é um rio, é este rio."
O ponto de partida deste livro da argentina Selva Almada é a ida de três homens a uma ilha próxima ao Rio Paraná. Eles, que moram em um lugarejo próximo à ilha, são Enero e Negro, amigos de muito tempo e que formavam um trio com Eusebio, que morreu afogado, e que agora viajam com Tilo, filho de Eusebio. Esta viagem pode ser vista como uma forma de os amigos oferecerem um suporte ao Tilo, por se preocuparem muito com ele, mas principalmente como uma forma de terem um pouco do Eusebio com eles, o que podemos ver quando Enero observa Tilo e percebe enormes semelhanças entre pai e filho, e também como uma espécie de rito de passagem da adolescência de Tilo.
O principal conflito que logo é posto é entre as pessoas que vão para a ilha e as pessoas que moram lá, tendo em vista as suas diferentes formas de se relacionar com a natureza, o que observamos já desde a primeira cena, em que os homens matam uma arraia. A violência dos homens — contra outros, contra outras, contra tudo — aparece ora de forma destacada, ora como algo do cotidiano, já naturalizada. A questão de gênero é outra que aparece durante o livro inteiro, caracterizando um certo paralelo entre a relação dos homens com as mulheres e com a natureza: ambas podem ser apropriadas, depredadas e descartadas.
Em diversos trechos, a história corre menos nos acontecimentos e muito mais pelos laços e e pelas relações entre personagens — e não apenas entre personagens humanos, mas também com os próprios elementos da natureza, uma vez que Não é um rio os constitui também como espécies de personagens e não apenas parte do espaço em que ocorre a história.
Há muitas simbologias: na água do rio, no fogo, no mato, nas árvores, no ar, no vento, nos sonhos, nas personagens mulheres — sobretudo Siomara, a personagem mais interessante, e suas filhas Mariela e Lucy, também fundamentais para a história. E é também por todas essas simbologias que o livro flerta um pouco entre o realismo fantástico, mas sem adotá-lo ou assumi-lo totalmente, deixando uma dúvida, uma inquietação.
"Esse homem não é desse mato, e o mato sabe. Mas deixa. Que se meta, que que o tempo que precisar para juntar lenha. Depois, o próprio mato vai cuspi-lo, os braços cheios de galhos, de volta para a margem."
Sobre a escrita: chamaram-me a atenção as diferenças nas formas de construção de personagens homens e de personagens mulheres e também de construção dos universos dos homens e das mulheres e dos espaços em que eles se cruzam e os conflitos que se dão. A forma da escrita parece carregar uma oralidade — ou: parece tomar emprestada a comunicação oral. Não há capítulos, apenas parágrafos e quebras do espaço de uma linha que entregam a passagem de uma cena a outra e entre os tempos, sendo que o tempo presente ocorre nos dias da viagem dos três homens e o passado vai a diferentes momentos, como a morte de Eusebio, um antigo trabalho de Enero, um momento da infância dos amigos, entre outros.
Por fim, Não é um rio apresenta uma história muito interessante e com uma escrita muito boa, sendo um livro curtíssimo, mas que consegue apresentar muitos elementos, todos muito complexos, e trabalhá-los de forma poética e direta.
Um adendo: Não é um rio fecha a trilogia de varones, que no Brasil muitos traduziram como trilogia masculina ou como trilogia da masculinidade. Os dois livros anteriores são O Vento que Arrasa (Cosac & Naify, 2012) e Ladrilleros (sem tradução para o português, 2013). Mas eu fui ler sobre e a própria autora diz que foi uma trilogia involuntária e que as histórias podem ser lidas separadamente e em qualquer ordem, pois cada uma tem personagens, tramas e aspectos próprios, sendo o universo masculino o elemento comum entre elas.
site: https://medium.com/@raulmaciel/sobre-n%C3%A3o-%C3%A9-um-rio-da-selva-almada-esse-homem-n%C3%A3o-%C3%A9-desse-mato-e-o-mato-sabe-ea50580d0269