Sarah Rappl 28/09/2019O fantástico é relativo: um coração de tinta pode bater tão forte quanto um coração de sangue*HÁ SPOILERS no decorrer do texto*
Todos temos nossas formas de escapar do mundo — saindo com os amigos, praticando esportes radicais, meditando; a minha é lendo. E muitas vezes eu faço isso sem querer e quando percebo, entrei de tão modo na leitura, que não notei barulhos e nem a hora passar. Minha percepção se volta somente para aquela história que me consome cada vez mais. E me vejo sofrendo e vibrando com os personagens. Essas são as melhores, em que os personagens te atraem — mas já vou abordá-los. Uma ótima vantagem de ler é que podemos sair quando quisermos das histórias. Só fechar o livro e fim: vilões, monstros e tudo de malvado que cada narrativa compõe ficam lá. Não podem nos alcançar no nosso dito mundo real.
Só que e se acontece de nos alcançar?
Essa é a premissa da trilogia Mundo de Tinta. O encontro do mundo real, o nosso mundo, com o mundo feito de palavras, de um livro.
E a princípio tudo parece lindo e maravilhoso: conhecer os personagens, os seres fantásticos, os cenários incríveis, só que tudo se torna perigoso quando é real. Quando o leitor passa a não ser mais leitor e sim interagir com aquele mundo.
Então vos alerto, pense bem antes de desejar ser sugado por um livro. Ou que algo venha daquele mundo para o seu. Ou pelo menos esteja preparado para quem o que pode sair.
Não costumamos nos preocupar com outras ações e pensamentos que os personagens teriam fora o que está narrado nas histórias que lemos. E a saga que se inicia com Coração de Tinta faz essa abordagem, que é um dos muitos pontos que me fascina na série. Nós podemos criar algo, mas a criatura vai desenvolver personalidade e vontades próprias. A trajetória de Fenoglio, autor de Coração de Tinta, dentro da obra Coração de Tinta, da autora real Cornelia Funke, publicada em nosso mundo real pela Cia das Letras (e depois pelo selo Seguinte), vai além do que ele imaginou em seu livro. Seus personagens têm vida. Têm sentimentos além das belas palavras que o compõe. E elas escapam de seu livro.
Maggie desde muito nova e mesmo que ainda não soubesse, já teve essa experiência de lidar com ações de personagens que passam a viver em seu mundo. E as consequências que trouxeram para a sua família. É no mínimo peculiar ver Maggie e Mo encantados com a interação entre eles próprios e personagens que conheceram lendo. E nós vamos conhecendo-os melhor conforme eles interagem! O que já é uma loucura.
Fenoglio, que ninguém parece gostar muito, para mim é incrível — como pessoa ele é cansativo, mas o seu personagem de autor deslumbrado é muito bacana de acompanhar.
Aprofundando nos personagens, o meu favorito era o Farid, seu fascínio e devoção aqueciam meu coração. Mas sua lealdade tem nome, como prova no terceiro livro e perdi o encanto por ele. Maggie e Mo são mais parecidos comigo, curiosos, zelosos, identifiquei-me de imediato e continuam sendo meus favoritos. Principalmente Mo. É um personagem muito bem trabalhado, complexo, que vai sendo desenvolvido. Ele passa a saber que é um personagem e luta contra o que lhe impõem. É bem legal a metalinguagem existente aí.
Entre os demais personagens, há o queridinho de muitos, Dedo Empoeirado, um que realmente não me cativa, mas é a estrela de Coração de Tinta de Fenoglio. Não me atraem personagens no estilo anti-herói e mesmo no terceiro volume, quando ele vira um ser fantástico praticamente, além de se “redimir”, ainda não me convenceu. Todavia, todo o contexto com as Damas Brancas e a relação dele com o fogo é bem fascinante.
Roxane, Príncipe Negro e o urso, Bailarino das Nuvens, Violante, Cosme, os ladrões e Doria, como também Resa e Eleanor, atraem pelo o que Maggie acha interessante neles, mas eu não me senti muito ligada, apesar de eu gostar deles no geral. Já no terceiro temos um desenvolvimento maior de Violante e ela parece uma personagem muito complexa, que mereceria um livro só dela: criança sofrida, com um pai vilão, tem fraco por menestréis e heróis, sempre tratada como feia, mas mantém o queixo erguido e a compostura, além do seu amor por livros. Que história incrível seria. Quem sabe ainda pode rolar uma dela junto com o Príncipe Negro? Fenoglio pira.
Nunca fui fã de vilões e aqui eles deixam a desejar. Não gosto de nenhum em específico. Talvez apenas Cabeça de Víbora, pelos seus medos e superstições. Mas Mortola, Capricórnio, Orfeu, Basta, todos são levados só pela maldade. Orfeu é o pior de todos, a narração dele era cansativa e egocêntrica demais — dispensaria o ponto de vista dele. Apesar de ele não ter morrido, mesmo eu compartilhando do mesmo desejo da Eleanor, seu fim foi “bobo”, porém deixou uma abertura para o mal ainda. E eu não gosto de finais ruins. Finais tristes, sim. Mas finais que o mal impera sobre o bem, nunca. Então me agradou que os maus tiveram como destino a morte e com cenas “fracas”, sem alarde. A do Capricórnio só que foi mais magistral, mas como vilão principal da obra, a meu ver, então foi “merecido”.
Já os sequestros/fugas foram difíceis de aturar. Não tenho críticas grandes à obra, no todo ela me fascina, mas isso ficou bem desgastante. Não me fez querer parar de ler, mas nos tira o fantástico, fica só masmorra/castelos. Sofrimento demais. Para os personagens e para a gente. E os cenários são tão legais: queremos as florestas, as fadas, as Damas Brancas, os homens de vidro selvagens, as árvores gigantes!
E todo esse mundo fantástico, só é incrível para nós que não temos nada disso. Enquanto para Doria, Farid e Dedo Empoeirado, o mais fascinante eram os carros, a energia elétrica e as demais facilidades que temos com a nossa tecnologia atual. Sempre vai existir algo mais fantástico. Por isso a arte é tão necessária. Para nos possibilitar o deslumbre desses outros mundos. Outras vivências. Maggie, Mo e Eleanor, principalmente, têm um carinho palpável pelos livros. E vai além de gostar de ler. Eles têm um encanto pela possibilidade. A vontade de querer consumir mais. Conhecer mais. A obra como um todo, desperta isso. Faz crescer dentro de cada um de nós essa compulsão que ronda os personagens, essa paixão por novos mundos, novos personagens, novas aventuras, novas histórias.
A escrita de Cornelia possibilita tudo isso. Ela é tão cheia de vida e amor! Cativa-nos a ler cada palavra. Ela tem um apelo, aconchega-nos em cada página. Faz-nos ver, também, como as palavras são poderosas e até místicas, num mundo antigo que não sabe ler. Em ‘nosso mundo’, muitas vezes a escrita à mão já é considerada insignificante, sendo que ela é um código extremamente útil para nos comunicarmos. Bater os dedos num teclado ou celular não pode substituir tinta e folha. Que os livros sejam todos digitais, mas as nossas palavras sejam encorpadas como a tinta. Temos mãos capazes e devemos usá-las, talvez só não tão ativamente quando Fenoglio e Mo. Afinal, até a Morte vem reivindicar caso um livro queira brincar de deus — uma das partes que mais acho legal: um livro ser o causador de tantas tramas e ainda a solução. A obra toda brinca com esse conceito de amor/medo por livros. Uma abordagem relevante e perspicaz, além de necessária, ainda mais atualmente.
A conclusão da série é boa, mas não me agradou totalmente, apesar das 500 páginas por edição, que te prendem e não deixam largar o livro até acabar, pareceu tudo muito rápido, que tudo se encaixou muito fácil. Como por exemplo, do nada surgir uma narrativa do Jacopo e ele ser a chave para o sucesso. Ninguém espera isso, então surpreendeu, senti até como se fosse uma jogada da autora, como se esperássemos o Fenoglio resolver tudo e ela nos mostrou ‘quem manda’ de verdade. Mas mesmo assim pareceu faltar algo. Como também saber mais do filho de Mo e Resa, nem o nome dele descobrimos…
Não obstante, é uma das minhas séries favoritas! Apesar do que me incomoda, o fascínio que sinto é maior. Sinto-me acolhida e esses sempre foram os melhores livros: os que posso me refugiar lá dentro. E ainda bem que comigo funciona fechá-lo e tudo ainda ficar lá.
Por fim, seguem alguns pontos específicos que eu não podia deixar de comentar.
Uma sacada legal: falar do futuro da Maggie e do Mo a partir de outra história que o Fenoglio já havia escrito sobre o Doria. Até dá um nó na cabeça. Mas já aquece nossos corações, pois sabemos que tudo vai ficar bem.
Uma mancada: não falar o que aconteceu com Sorrateiro e o Cérbero.
Uma lástima: o filme de 2008. Péssimo como adaptação. Ficou caricato, bobo e infantil demais.
Uma dualidade: é nos dito que o livro dentro do livro chama Coração de Tinta porque o coração de Capricórnio é negro como tinta. Todavia o nome da obra em si, principalmente quando acompanhamos até o fim e vemos o “feitiço” que Mo e Fenoglio usam no livro com as palavras ‘coração, sangue e morte’ (que dão título às edições da trilogia), podemos notar que é algo mais intrínseco. Que o livro e seus personagens são quase um organismo vivo, que mesmo sendo feitos de tinta, têm um coração que bate.
Uma descoberta: há um livro de contos chamado Mundo de Tinta (Cornelia Funke — editora Seguinte), lançado após a trilogia. Fiquei até meio chocada de nunca ter ouvido falar dessa antologia, mas já está na lista e sempre válido ler mais sobre um universo que adoramos. Apesar de eu nunca gostar desses contos que saem depois das obras, pois sempre considero fracos, ainda quero conferir.
Um bônus: os trechos que têm nas edições a cada começo de capítulo. Várias obras e poemas me interessaram, é uma abertura também para conhecermos novos livros e autores. Como por exemplo, o poema On turning ten, de Billy Collins, que eu me apaixonei. Fora a emoção de reconhecer alguns.
É a segunda vez que li Coração de Tinta, Sangue de Tinta e Morte de Tinta. A primeira leitura foi há uns 8, 9 anos atrás. E não me lembrava de quase nada e fiquei me martirizando: como podia não me lembrar de uma série tão sensacional? Como é possível ter gostado tanto de algo e não guardado nada… Mas talvez seja a magia do livro, de nos fazer ‘esquecer’, para querermos ler de novo e de novo e de novo. O que obviamente pretendo fazer daqui alguns anos. Afinal, esse é o tipo perfeito de obra que vale a pena ter na prateleira e manusear de tempos em tempos, amando cada pedacinho dela, exatamente como o Mo faz quando pega um livro.
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