Suruassossaurus 17/10/2023
O que liga todos os humanos?
Novatos na comunidade espacial, lembrados pelas demais espécies inteligentes como os primatas fedidos que foram encontrados quase mortos em duas naves vagando sem rumo, aqueles que mal chegaram e já querem sentar na janelinha. Sim, esse livro foca praticamente inteiramente nos humanos do universo da escritora Becky Chambers, e isso me causou emoções fortes e inesperadas.
O terceiro volume, seguindo uma característica do anterior, não trás de volta os personagens da nave Andarilha, acabando de vez com minha esperança de revê-los. Também reduz ainda mais a pluralidade de espécies inteligentes contendo apenas uma personagem, a repórter Ghuh?loloan Mok Chutp como personagem não humana, o que é outra coisa que me deixou decepcionado. Mas ainda sim essa leitura está longe de ser uma experiência negativa.
O cenário da maior parte do livro é A Frota: as naves com as quais os últimos humanos partiram da Terra. Desassistidos pela elite econômica que se instalou em Marte, estas naves são o resultado de um último esforço técnico, mental e braçal para dar um futuro àqueles que pareciam estar condenados a morrer junto da vida na Terra. Em um tempo no qual ainda não havia ocorrido contato algum com outra forma de vida inteligente estas naves foram projetadas para serem autossuficientes e sustentáveis pelo maior tempo possível. Tal esforço foi demasiado bem-sucedido, porém havia um limite e este só não foi atingido pelo súbito contato. As décadas se passaram, os humanos foram aceitos (após muito custo), receberam um sistema para chamar de seu e até passaram a povoar outros mundos com culturas alienígenas diversas, porém A Frota mantém uma aura enigmática, um significado chamativo e, ao esmo tempo, difícil de interpretar. É em volta dela que a trama se desenvolve.
O acidente envolvendo a nave Oxomoco foi notícia em todos os cantos da comunidade galática. As milhares de vidas perdidas pelo simples desgaste dos componentes despertos interesses e medos diversos. Após este terrível acidente que ocorre logo no início do livro passamos a vivenciar a rotina de diferentes personagens que lidam tanto com a forma como isso os impactaram quanto com o ambiente compartilhado à sua volta.
Tessa é a única personagem mencionada nas obras anteriores pois se trata da irmã de Ashby, capitão da Andarilha. Precisa se dividir entre cuidar do pai, que corre o risco de perder a visão e é resistente à ideia de realizar um transplante, o risco de perder o seu bem estabelecido e confortável cargo de trabalho e a lidar com o medo do vácuo que sua filha mais velha desenvolveu após o acidente com a Oxomoco e com as birras e manhas do seu filho mais novo que ainda é um bebê, é a personagem que mais me conectei e gostei de acompanhar.
Isabel é uma figura conhecida e estimada na Frota por seu longo e dedicado tempo servindo aos Arquivos, local no qual toda a história da Frota e os registros das pessoas que nela vivem é armazenado. O acidente com a Oxomoco atraiu muitos olhares e interesses pela frota e graças a isso acaba por recepcionar a harmagiana gelatinosa Ghuh?loloan, a quem tem a responsabilidade de ensinar não apenas como os humanos na Frota vivem, mas também a maneira como se enxergam, o que os une, seus valores e sentimentos.
Kip é o adolescente forçado a tomar decisões sobre o que quer da vida sem realmente ter certeza. Perdido em meio à responsabilidade de assumir um lugar na Frota e à influência questionável de Ras, seu amigo mais próximo, ele encara o, as vezes curto e as vezes longo demais, tempo que resta para se tornar adulto. As expectativas dos pais e de toda a comunidade e a incerteza de que rumo tomará tornam o personagem mais profundo além do típico ?adolescente fazendo merda?.
Eyas é vista pelos seus vizinhos na Astéria como uma figura quase religiosa. Em uma nave construída para viajar por quanto tempo fosse possível no espaço sem perspectiva de encontrar um planeta habitável ou uma mão amiga, reciclagem é a palavra de ordem e isso inclui os mortos. A compostagem foi a solução encontrada para lidar com os cadáveres. Evitando doenças e adubando o solo no qual o alimento cresce om o bônus de transformar a perda de um ente querido em algo com um significado forte visto que ele servirá a seu povo após sua ida. Os cuidadores, como Eyas, são vistos com respeito e gratidão, verdadeiros pilares psicológicos para pessoas em luto, mas também tratados com certo distanciamento. Tal fator faz com que ela busque nas naves vizinhas onde ninguém a conhece, o contato necessário para suprir sua carência.
Sawyer é o único personagem não nascido na Frota, mas que, após saber do acidente e ver como os humanos no planeta onde vive uma vida complicada pulando de serviço em serviço se solidarizaram com uma perda distante, mas que afetou a todos, decide se mudar para a Frota. Tendo apenas uma noção geral de como a vida embarcada é e não possuindo nenhuma ligação parental, ele busca um lugar ao qual pertencer e se dedicar. Mais do que isso, busca sentido à sua existência.
Por fim temos o personagem mais importante: a própria Frota. Como pode ser que algo tão perene na mentalidade dos humanos consegue seguir sendo a mesma após tantas mudanças? É difícil explicar esse elemento tão cativante e repleto de contrastes. Através de atos altruístas de outras espécies ela foi modernizada, mas ainda são naves antigas e com sua segurança questionada após o acidente com a Oxomoco. Embora comerciantes tragam diversas mercadorias para dentro dela a principal forma de comércio é a troca de mercadorias. Serviços, cada cidadão passa por diversos empregos para ter a noção de comunidade, todavia todo ano um número grande de seus habitantes troca a vida embarcado pela estabilidade de um planeta ou lua sob seus pés. São tantos fenômenos que ressaltam tanto o peso das tradições quanto a rapidez da modernidade que a personagem que melhor traduziu esse sentimento de vislumbre foi justamente a única alienígena na história que, ironicamente, está numa posição semelhante à nossa como leitores.
É um livro que demora um pouco para engatar e é um pouco difícil entrar de cabeça na proposta, porém quando isso ocorre torna a leitura e, principalmente, a pós leitura muito prazerosos pois, ao menos comigo, me peguei lembrando dele não como uma linha de acontecimentos envolvendo personagens em uma trama específica, mas sim o andamento de toda uma cultura fantástica. Senti falta de ter IAs apaixonantes como Lovey e Coruja e realmente gostaria de ter algo semelhante com outras espécies inteligentes, porém a autora já me surpreendeu tantas vezes que não sinto que ela me deva nada.