Érica 30/04/2015Uma brisa...O raciocínio lógico de Dawkins para sustentar seus argumentos, sua sólida formação científica, sua pesquisa séria sobre o assunto, as leituras feitas e os dados coletados e interpretados, junto ao seu talento para escrever de forma fluida e interessante fazem desse livro uma diversão para o leitor minimamente interessado no assunto. O autor é sempre lógico e argumentativo. E o livro só não é mais divertido por ser também muito triste em várias partes. Intolerância, preconceito, genocídio, violação dos direitos humanos estão presentes nas páginas de "Deus, um delírio" e suas histórias nos estarrecem muitas vezes.
Para ser justa, também achei muitas partes engraçadas e o livro tb, e no final das contas, acrescenta para o nosso conhecimento de mundo. Não digo que caí na gargalhada, mas como não achar divertida a lógica no seguinte raciocínio (ponho em minhas palavras): muitas pessoas religiosas não acreditam no mito de Adão e Eva, que declaram ser uma alegoria que não deve ser interpretada literalmente. Esses mesmos apologistas da religião, no entanto, acreditam e sempre defendem que Jesus, real e factivelmente, morreu na cruz para nos livrar de nossos pecados. Nossos pecados têm origem em Adão e Eva e só existem porque eles comeram a maçã do conhecimento, o que lhes deu (nos deu, hereditariamente) a consciência de estarmos nus e o conhecimento sobre o bem e o mal. Ou seja, o filho de deus morreu de verdade em nome de um personagem fictício de uma história alegórica. Loucura de pedra.
Uma das coisas que muito me agradou é que Dawkins não é cínico na hora de argumentar, e sempre tem ponderação para colocar na boca de um interlocutor hipotético, como artifício retórico, alguma argumentação que ele pretende combater. Concordo com ele quando defende que a religião não é mais merecedora de respeito do que qualquer outra ideia. Defendo a leitura desse livro por qualquer pessoa, acredite ela em deus ou não, seja ela religiosa ou não. Vc pode até não querer ler, só não é defensável não ler por medo de cumprir o propósito de Dawkins com esse livro (para quem não sabe, seu propósito era de converter as pessoas ao ateísmo, principalmente os agnósticos).
A parte que defende, com base científica, que nosso cérebro tem a tendência psicológica para personificar objetos inanimados e enxergá-los como agentes é uma das melhores. Daniel Dennett e a história das "três posturas" vale uma pesquisa! Segundo Dennett, para conhecermos o mundo, adotamos três posturas, a postura física, a de projeto e a intencional. A primeira postura exige tempo, por ser mais científica e precisa. Como o tempo pode ser escasso em algumas situações, apelamos para um atalho, que seria conhecer algo (ou alguém) a partir da postura de projeto. A postura de projeto assume que as coisas foram projetadas para algum propósito: você não precisa demorar horas estudando a física do seu despertador para saber que ele vai tocar, se vc simplesmente pegar o "atalho do projeto" e assumir que ele vai tocar "porque foi feito para isso" (uma forma de pensar mais propícia ao florescimento da religião do que a postura física). Um atalho ainda mais curto é a postura intencional, que dá um passo além da postura de projeto: as coisas não só foram projetadas para um fim, mas são, ou contêm, um agente com intenções! (uma postura ainda mais propícia ao florescimento da religião). Além do mais, esse sistema se coaduna com as teorias psicológicas que afirmam nossa tendência a enxergar agentes nos objetos que se movem quando somos bebês. Lembre-se também da nossa inclinação, aparentemente natural, para identificar automaticamente rostos onde não há. Na verdade, temos dificuldade em não enxergá-los :)
Como gosto de linguística, curti muito (e dei risada!) a parte sobre as "ordens de intencionalidade" (ainda Daniel Dennett). Ele fala em 'intencionalidade de terceira ordem': "o homem achou que a mulher sabia que ele gostava dela". De quarta ordem: "a mulher percebeu que o homem achava que ela sabia que ele gostava dela". E até de quinta ordem!: "o xamã adivinhou que a mulher percebeu que o homem achava que ela sabia que ele gostava dela". Dawkins diz então que ordens muito elevadas de intencionalidade são reservadas provavelmente à ficção e cita o livro "The Tin men" [Homens de lata], de Michael Frayn, com uma ordem cômica de elevação de intencionalidade. Ao final, Dawkins comenta: "O fato de que somos capazes de rir com tamanho contorcionismo ficcional da interferência em outras mentes provavelmente nos revela algo de importante sobre a forma como nossa cabeça foi naturalmente selecionada para funcionar no mundo real". Mas o mais estarrecedor é a conclusão disso tudo: "a seleção natural moldou os cérebros para empregar a postura intencional como atalho. Somos biologicamente programados para imputar intenções a entidades cujo comportamento nos interessa [...] As crianças, e os povos primitivos, imputam intenções ao clima, a ondas e correntes, a pedras que caem". Um tal Justin Barrett cunhou o termo que achei perfeito "Dispositivo Hiperativo de Detecção de Agente". O interesse do assunto para o entendimento sobre como surgem as religiões é óbvio.
É um livro para reler, pois acrescenta e inspira outras leituras, sobre esse ou outros assuntos. Influenciou várias leituras que pretendo fazer futuramente. Como o "Contato", de Carl Sagan, "Contraponto", de Aldous Huxley, "Carta a uma nação cristã", de Sam Harris, "His dark materials", do Philip Pullman etc. Tb me influenciou na decisão de assistir alguns filmes e documentários. Agora preciso ver "A vida de Brian" e "O Sentido da Vida", do grupo Monty Python. Ah, ainda não li o "Guia do Mochileiro das Galáxias" e preciso resolver isso.
O último capítulo foi um pouco curto e grosso e acho que poderia ter sido mais desenvolvido, embora também contenha muitas partes memoráveis. São muito interessantes, mesmo que superficiais, os comentários sobre física quântica (aliás, o quê se pode dizer de inteligível no âmbito da física quântica, para um leigo, que não seja superficial?).
"Um dos efeitos verdadeiramente negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude satisfazer-nos com o não entendimento"
"Se alguém atribui alguma coisa a Deus, geralmente isso quer dizer que ele não faz a menor ideia"
Sorria, vc está na zona Cachinhos Dourados! :D