Flávia Menezes 23/02/2023
???PRECISAMOS FALAR SOBRE O NARCISISMO MATERNO.
?I´m Glad My Mom Died? (no Brasil, publicado como ?Estou Feliz que Minha Mãe Morreu?), lançado em 2022, é uma autobiografia que revela as memórias da vida da ex-atriz e cantora Jennette Michelle Faye McCurdy, mais conhecida como Jennette McCurdy, que alcançou grande sucesso interpretando a personagem Sam Puckett nos sitcom da Nickelodeon, ?iCarly? e ?Sam & Cat?.
O título da autobiografia é bastante polêmico, e antes de ler, eu vi uma postagem aqui no Skoob, de uma pessoa que acreditava que ele deveria ser algum tipo de ?jogo de palavras?, mas a verdade é que não. Esse não é um jogo de palavras, e por mais chocante que isso possa parecer, nem todas as mães são boas para os seus filhos. E aqui eu não estou falando de problemas de relacionamento entre mães e filhos, mas de problemas bem maiores do que esse.
Desde muito cedo somos ensinados a pensar que ninguém no mundo é capaz de nos amar tão incondicionalmente como as nossas mães. Mas a verdade é que isso não é toda a verdade, e filhos de mães que sofrem de algum problema psicológico ao invés de se sentir amados, podem mesmo é acabar se sentindo sufocados!
O Transtorno de Personalidade Narcisista (TPN) é um transtorno de personalidade catalogado no ?Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais ? DSM-IV?, que tem como característica principal sentimentos exagerados de auto importância, e uma necessidade excessiva de admiração, além de ausência de empatia pelos sentimentos dos outros, incluindo dos filhos. Se você tiver interesse em entender mais sobre esse transtorno, eu deixo aqui a indicação do livro ?Sequestradores de Almas ? Guia de Sobrevivência?, da psicóloga Silvia Malamud.
Crescer em um lar com uma mãe que sofre desse tipo de transtorno te faz sentir uma exaustão infinita, como se sua alma tivesse sido sugada (é praticamente como viver com um dementador) pelas constantes exigências e cobranças diárias, que criam esse ciclo sem fim de tentar agradar uma mãe que nunca se sentirá satisfeita com quem você é, ou com o que tenha a lhe oferecer. O que faz com que muitos desses filhos acabem por entrar em relacionamentos com pessoas altamente exigentes e críticas (algumas vezes, até tóxicas), por compreender que o amor é baseado em exigências, e ver como normal o comportamento crítico dos outros (já que sua mãe também é assim), sentindo essa necessidade de sempre tentar agradar, mesmo que isso signifique fazer coisas que você não gostaria ou não acha certo fazer.
Talvez nesse ponto, e se você nunca ouviu falar desse transtorno antes, vai pensar que tudo isso é pura insanidade, mas o que eu preciso te dizer é que: sorte a sua não saber o que é ter uma mãe assim!
Fazendo essa breve introdução, eu preciso dizer que os relatos de Jennette McCurdy, em especial de sua infância e início da adolescência, são bem chocantes, porque os comportamentos da mãe eram altamente nocivos, e o pior: em um momento de construção da sua identidade. E muito do que Jennette nos conta, revela o quanto de prejuízo que um comportamento como esse causou em sua vida e em seu psicológico.
Jennette desenvolveu ainda na infância tanto o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), como Transtorno Alimentar (Bulimia), e para ser sincera, eu senti em sua narrativa muitas outras coisas, que não me cabe dizer aqui. Mas uma coisa que eu realmente senti foi uma profunda decepção, em ver como uma mulher tão jovem, de uma geração mais atual, possa se mostrar tão preconceituosa com o trabalho psicoterapêutico. E para quem já leu e por algum motivo esteja vendo essa resenha, aproveito aqui para esclarecer que, pelo que ela narra das terapias que ela buscou, ambas se enquadram no trabalho do coach. As técnicas citadas não possuem qualquer relação com o que é trabalhado em um setting de psicoterapia.
Eu confesso que cheguei a ficar bastante irritada com a forma como Jennette banaliza a psicoterapia, no momento em que ela coloca como algo "típico de psicólogos" querer analisar a vida pregressa do paciente, especialmente falar da infância e da relação com os pais. Triste ver esse tipo de comportamento, porque esse trabalho tem uma importante função, e a forma como os vínculos afetivos da infância são estabelecidos, tem grande influência no nosso desenvolvimento psicológico. E sim. A relação com aqueles que nos deram a vida afetam em muito a nossa forma de perceber as demais relações que estabelecemos ao longo da vida, sem contar que hoje já existem estudos que comprovam como muitos dos traumas de familiares que vieram há 3 gerações antes da nossa, podem ser herdados geneticamente.
Curioso perceber como somos rápidos em encher a boca e dizer que não somos preconceituosos, quando preconceitos nada mais são do que pré-conceitos que temos sobre algo, e disso, ninguém se salva. É claro que as resistências em iniciar um processo de tratamento psicoterapêutico vai muito além do que o fato de que muitas pessoas ainda desconhecem como eles se dão, e por isso há tanta descrença no que esse profissional pode fazer por nós, mas eu não posso deixar de dizer aqui que quando deixamos de dar atenção à nossa saúde mental, o nosso corpo vai padecer daquilo que nos negamos a ver (e cuidar).
Afinal, não é como diz aquela citação: ?Mente sã, corpo são?? Se de fato compreendêssemos a importância de cuidar da nossa mente, como sabemos que precisamos cuidar do nosso corpo, e o quanto essa mente (inclusive!) interfere na saúde desse corpo, muitos dos nossos problemas de relacionamento e da nossa falta de qualidade de vida (provocados pelo estresse, ansiedades, insônias etc) poderiam ser evitados. Até doenças! Inclusive os transtornos de personalidade, tais como o Transtorno de Personalidade Narcisista, poderiam ser tratados precocemente, resultando em menos dor e menos problemas psicológicos tanto para a pessoa acometida, quanto na vida das demais pessoas com quem ela vive (especialmente na família).
Bom... até aqui já deu para entender o motivo pelo qual eu estou classificando esse livro como ?razoável?. Dar uma nota baixa para uma autobiografia é algo que eu sempre achei inconcebível, pois a história das pessoas, seja ela qual for, precisa ser respeitada. E essa não é uma nota sobre o que ela relata, mas sobre como ela relata. Afinal, o meu desgosto com esse livro de memórias, é que ele acaba por ser um desserviço às pessoas, quando passa a banalizar a importância do cuidado com a saúde mental, e banalizar coisas tão sérias, tais como os distúrbios alimentares.
Eu quase abandonei essa leitura quando Jennette começou a falar sobre o seu distúrbio alimentar, e antes de me aprofundar no assunto, vou trazer a fala dela aqui para me justificar: ?Bulimia não é a resposta. A anorexia é. A anorexia é majestosa, controlada, toda poderosa. A bulimia é descontrolada, caótica, patética. A anorexia do pobre. Tenho amigos com anorexia e dá para perceber que eles sentem pena de mim?.
Neste ano, em uma propaganda em uma rádio norte-americana, o neurocirurgião e correspondente médico da CNN, Dr. Sanjay Gupta, que possui um famoso podcast chamado "Chasing Life?, falou sobre o aumento dos casos de transtornos alimentares pós-pandemia, e como é importante que os pais estejam atentos aos sinais, pois a evolução pode ser rápida, e por trás só existe um único desejo: o de morrer! Sim! Bulimia e anorexia não é sobre querer ser magro, mas sobre o desejo inconsciente de querer morrer.
E por isso, fica aqui a minha indignação com uma autobiografia que romantiza e fala de forma tão banal de problemas tão sérios como os distúrbios alimentares, assim como do Transtorno Obsessivo Compulsivo, que ela se referia como se fosse uma "voz Divina".
Um distúrbio alimentar não é uma coisa sem importância de pessoas que só querem se manter magras. Ter TOC não é um comportamento rotineiro sem grande importância que inclusive pode ser uma forma que Deus usa para falar com você. Ambas as situações trazem grandes sofrimentos para quem é acometido, e os resultados podem levar a pessoa a quadros de transtornos psicológicos severos, e à morte. Não são quadros que devem ser de forma alguma romantizados com tamanha irresponsabilidade. Especialmente por alguém que é uma figura pública com influência sobre as pessoas. Em momento algum esse livro traz algum tipo de advertência, nem mesmo de números que as pessoas possam recorrer para procurar ajuda se identificarem possuir qualquer comportamento inadequado ligado a algum dos transtornos narrados neste livro.
Foi bem curioso perceber que o que eu esperava encontrar na autobiografia do ator Matthew Perry, que interpretou o icônico personagem Chandler em ?Friends?, que é um homem de uma geração bem mais resistente às psicoterapias, eu encontrei aqui. ?Friends, Lovers, and the Big Terrible Trouble? (no Brasil publicado como ?Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível?), é uma narrativa muito corajosa e honesta de um homem que não se poupou ao revelar todas as suas fragilidades para nos mostrar o que estava por trás dos seus vícios, que foram cirurgicamente analisados e reanalisados em anos de muito trabalho psicoterapêutico, e de como, mesmo assim, ele sabe que a linha que separa a sua sobriedade do seu vício sempre será bastante tênue.
Claro que a vida de Jennette McCurdy foi marcada por muita dor e disfunção parental, mas a verdade é que ou você mergulha com coragem para compreender tudo o que lhe aconteceu e trabalha (na psicoterapia) os seus efeitos para poder seguir com a sua vida de forma mais saudável, ou você pode se colocar em um lugar passivo de vítima do destino, e ainda correr o risco de começar a reproduzir os mesmos comportamentos que lhe foram tão nocivos. E por que não? Afinal, ?se você não se curar do que te feriu, você vai sangrar em cima de pessoas que não te cortaram?.
Nem mesmo o título dessa autobiografia faz qualquer sentido, porque em momento algum ela reconhece o alívio de sair do radar dessa mãe, que exigia dela de forma tão exaustiva (e injusta até, porque não se pode exigir assim de um filho!). Ao final, tudo o que senti é que seus reqis sentimentos permaneceram em hm lugar oculto, seja pelo medo de expor o que realmente sentiu, ou por realmente não saber descrever, ou qualquer outro motivo que só ela sabe. Mas a verdade é que escondê-los é dizer que filhos de pais narcisistas estão errados em sentir raiva dos pais pelo comportamento inadequados deles. Onde está a empatia de quem busca aqui, em um livro como esse, por empatia?
Uma coisa aqui é muito importante compreender: nossos pais não são seres perfeitos. Eles também ficam doentes, sangram, erram, falham (inclusive conosco!), e por mais que queiramos negar, também podem sofrer de um problema psicológico. Não queremos ser pessoas maduras? Então, compreender que nossos pais não são super heróis (e nem perfeitos) é o primeiro passo!
As dores de Jennette McCurdy são reais, e muitas coisas que ela vuveu foram realmente muito dolorosas. Disso não há dúvida. E ler esse livro lhe dará uma boa ideia do que é o Narcisismo Materno e tudo o que ele acarreta, mas fica aqui um ALERTA: existe muito mais por trás dessa narrativa, especialmente pela ausência de tratamento psicoterapêutico, que causa algumas distorções ao que ela traz aqui. Como eu já disse antes, muito foi romantizado (e até banalizado) sobre os distúrbios alimentares, transtornos (TOC e TPN), e até de comportamentos inadequados e bastante nocivos que ela demonstrou ter em vários momentos da sua vida.
??IMPORTANTE: se você se identificou com algum dos transtornos ligados a esse livro, ou percebe que a sua mãe também pode estar sofrendo de um transtorno igual ao da mãe da Jennette, por favor, não tenha medo de procurar por ajuda psicológica. Quanto mais cedo esses transtornos são diagnosticados, mais eficaz poderá ser o seu tratamento, e mais cedo você poderá a voltar a viver uma vida de qualidade, e com muito mais saúde tanto física quanto mental!