Tuca 18/03/2024Dois franceses excêntricos, um deles conhece uma família polonesa da aristocracia decadente europeia ainda mais excêntrica e é toda essa loucura e o desejo de sobrevivência que vai fazer eles resistirem à segunda guerra. Isso e as pipas.
Eu iniciei esse livro, sabendo que ele de alguma forma relacionava às pipas à segunda guerra mundial e também que seu autor foi muito conhecido pela sua obra literária. Publicado em 1980, “As pipas” traz como protagonista Ludo Fleury, um menino francês, que mora junto ao tio artesão de pipas e funcionário dos correios, na Normandia. Os Fleurys eram assolados por uma excelente memória, uma exacerbada inteligência, um intenso emocional e para o mundo, eles aparentavam ter uma certa loucura. É essa aparência que possibilita a Ludo se camuflar e participar da resistência francesa à ocupação alemã. Mesmo lutando pela liberdade da França seu coração e sua mente pairam para longe, como as pipas do tio; parte de Ludo se desprendia e buscava sempre por Lila, a polonesa que fora seu amor de infância, que se tornara sua “razão de viver”.
A procura por Lila é também o reencontro e o sonho com a França, que não é mais a mesma depois de anos de ocupação. Os personagens meio caricatos por vezes parecem ser metáforas das relações entre os países, cada qual sendo identificado por sua nacionalidade: a disputa entre Ludo (francês) e Hans (alemão), o amor de ambos por Lila (polonesa), o nacionalismo cultural/gastronômico de Duprat, a resistência de Ludo que precisa se dissimular na excentricidade, a luta pela sobrevivência de Lila que a leva a atitudes desesperadas, mas nada é realmente o que parece ser. Lila, por exemplo, não apenas aparenta representar seu país de origem, ou o estereótipo da aristocracia decadente, mas também a França renascida. Ela é a modernidade camuflada, e como tal é confusa, ambígua, intensa, meio egocêntrica e meio apaixonante.
Ludo tem uma ironia e um olhar para a vida, para o amor e até mesmo para guerra inebriantes. Ele e Lila me deixaram louca durante a leitura com essas personalidades conflitantes, que, no entanto, se encaixavam de um jeito perfeito. Romain Gary criou um enredo sobre personagens. Eles brilham mais do que tudo. Por um bom tempo achei que a narrativa iria fluir desse jeito, mas quando ele insere o contexto da guerra, da luta pela sobrevivência e das diversas formas de resistência fica mais claro que a completude do romance era a somatória desses personagens com o que cada um é capaz de fazer para sobreviver acrescido ainda à dualidade de humanidade e desumanidade, bem contra mal que não é óbvia.
“Faz muito tempo que não sinto mais nenhum vestígio de ódio pelos alemães. E se o nazismo não fosse uma monstruosidade desumana? E se ele fosse humano? E se ele fosse uma confissão, uma verdade oculta, reprimida, camuflada, negada, enterrada no fundo de nós mesmos, que sempre acaba vindo à tona? Os alemães, claro, os alemães... Era a vez deles na História, só isso. Veremos, depois da guerra, vencida a Alemanha e desaparecido ou enterrado o nazismo, se outros povos da Europa, da Ásia, da África e da América não virão substituí-los. Um camarada vindo de Londres nos trouxera uma brochura com poemas de um diplomata francês, Louis Rouché. Ele falava do pós-guerra. Dois versos ficarão para sempre em minha memória: 'Haverá grandes massacres./ É tua mãe quem o diz.’"
Pesquisando um pouco sobre a vida do autor, fiquei com a sensação de que havia um quê da relação dele com a esposa, a atriz Jean Seberg em Ludo e Lila. Jean cometeu suicídio/foi assassinada em 1979 e o livro foi publicado em 1980. Em 1980 também foi o ano em que o autor cometeu suicídio (ou foi suicidado) após ter denunciado que o FBI a havia matado. Vale salientar que eu achei Ludo um personagem maravilhoso, mesmo em suas passividades, quando ele se soltava ele trazia tudo o que eu queria ler, e principalmente junto a Lila, eles dois eram arte e expressão do drama que viviam e do sentimento que ficou guardado. Sendo um livro sobre dois resistentes, e tendo Jean Seberg lutado a favor dos movimentos civis das pessoas negras nos EUA, eu acho que faz sentido a dinâmica criada entre eles, supondo que realmente haja algo da personalidade deles ali. Ainda mais, quando é exposto como Ludo tinha medo que os nazistas quebrassem o espírito de Lila.
Li esperando que esse fosse mais um romance filosófico sobre a segunda guerra mundial, o que ele não deixa de ser, porém sinto que ele me proporcionou mais do que eu poderia imaginar. É uma narrativa que insere uma autenticidade nesse período histórico sem perder de vista o embate entre a loucura e a razão que é necessário para se lutar pela própria sobrevivência e daqueles que amamos.
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