Maltenri 15/11/2011
O pior da trilogia
A trilogia “Dragões de Éter”, escrita por Raphael Draccon, chega ao seu final com “Círculos de Chuva”, pela editora Leya. Neste último volume, somos apresentados a uma situação mais dramática que nos primeiros livros: aqui, em princípio, todo o continente do Ocaso entra em guerra, por conta de uma quebra de um tratado internacional firmado entre os humanos de Arzallum e os gigantes de Brobdingnag.
Comecemos pela forma, e analisemos o fundo do romance, assim como a trilogia na sua totalidade na seqüência.
Ao ler o livro, tive a impressão que o estilo do autor involuiu com relação ao segundo livro, e talvez até com relação ao primeiro. Está impreciso, inconsistente e variando muito entre bons momentos e péssimos momentos, tornando o estilo fastidioso e no limite do aceitável para o leitor atento.
Por exemplo, na página 225, o narrador nos presenteia com a pérola “agora estava na tal da traquéia”. Pergunto então se o autor/narrador desconhece a traquéia, parte fundamental do corpo humano, ou se dúvida de sua existência. Este tipo de fraseamento só é usado no oral, e mesmo assim com um caráter extremamente debochado, ou indicando desconhecimento do objeto mencionado. E este é só um dos inúmeros exemplos que podem ser encontrados ao longo do livro.
O autor tenta retornar ao estilo usado no primeiro livro, e um pouco mais abandonado no segundo, em que tenta estabelecer um diálogo fictício entre narrador e leitor (como se o leitor fosse uma pessoa que estivesse escutando um bardo contando uma história em alguma taverna). E em um momento do livro, tenta até acentuar este aspecto, fazendo com que o leitor participe diretamente da ação. Como já havia dito na resenha do primeiro livro, não me agradou naquele momento e continua não me agradando aqui. Sobretudo porque esta participação não adiciona nada a história, a não ser uma bela contradição: se o leitor participa da narrativa, por que o narrador conta tudo como se os acontecimentos já houvessem acontecido há muito tempo, e ele estaria apenas relatando fatos desconhecidos a um leitor ignorante?
Ademais, uma das principais falhas do estilo do autor é a mania, cada vez mais presente e irritante, de anunciar o que está por vir, como no final de um episodio de uma série de TV. Já disse várias vezes, e repito aqui mais uma vez: este tipo de artifício prende a atenção de forma muito artificial, propício para a TV, mas completamente absurdo para um livro.
Algo que muito me surpreendeu, e muito, foi o trabalho de edição dedicado ao livro. Se nos dois primeiros livros a Leya fez um trabalho irrepreensível, neste terceiro tomo a qualidade caiu por terra. São inúmeros os erros de português, digitação e edição encontrados no decorrer da leitura. E não só estes erros aparecem com freqüência, como por vezes são crassos demais para que qualquer profissional da área deixe passar.
No que diz respeito ao conteúdo do livro: fiquei tão decepcionado quanto com a forma.
A estória está permeada de ilogismos e incoerências capazes de fazer qualquer um indagar-se sobre o domínio de Draccon sobre sua própria obra. Nesta parte possivelmente haverá SPOILERS, portanto, se o leitor desta resenha não leu ainda o livro, não seria má idéia seguir até a terceira parte, onde estará exposto uma idéia geral sobre a trilogia.
Ao ler este derradeiro capítulo (pelo menos quando esta resenha foi escrita assim era o caso), não é impossível ficar com a sensação de incompreensão. Afinal, este parece ser o sentimento do jovem carioca quando tenta elaborar o fim de sua saga, ou quando tenta dominar todos os aspectos de seu universo.
A verdade é que o autor parece completamente perdido dentro de sua trama. Tem-se a impressão que ele conhece o começo e o fim de seus personagens, mas o que ocorre neste intervalo é nuvioso. Tem-se a impressão que ele não sabe direito que caminhos percorrer para levar seus personagens até seus destinos, e avança na base da tentativa e erro: introduz um elemento na história, depois o esquece e se livra dele com um pequeno capítulo (como os Cavaleiros de Helsing, que não participam quase nada da aventura, após sua alardeada estréia no volume dois). Ou as vezes nem se dá ao trabalho de se desfazer do mesmo: o Mago de Oz é apresentado como talvez o ser mais poderoso de Nova Éther, e sua participação se resume a um capítulo, sendo este mesmo recheado de personagens poderosos que dizem tomar partidos mas no fim não fazem nada, tornando o capítulo quase inútil para o andamento do livro.
O que nos leva a um elemento importantíssimo: durante toda a saga, a magia tem um papel principal na obra, e aqui, ela praticamente desaparece da obra: Liriel Gabbiani, uma telecinética poderosíssima, fica a mercê de tudo e de todos, praticamente inofensiva; os principais magos do mundo não fazem nada num momento histórico do universo criado. Só reaparece para corrigir situações complicadas em que o autor se coloca sozinho: uma fada aparece do nada, salva João, cobra um preço e nunca mais se escuta falar da mesma. E assim o autor vai deixando ao longo do livro várias pontas soltas, dando a impressão de que, perdido dentro de seu mundo, tenta se agarrar a qualquer pequena inspiração para sair do buraco. Fica a impressão, em muitos momentos, de enchimento de lingüiça.
É interessante também como personagens importantes nos outros livros desaparecem neste terceiro: Sabino Von Fígaro, por exemplo, tem sorte de aparecer em alguns parágrafos. Maria, uma das protagonistas só aparece por conta de uma tentativa do autor de integrar os personagens Casanova e Don Juan na trama, pois caso contrário, seria só mais um figurante.
Marcantes também são os inúmeros ilogismos e inconsistências apresentados no livro, decorrentes dos elementos apresentados anteriormente nesta resenha. Por que motivo os gigantes raptaram Wendy? Porque eles são maus, nos explica o narrador. Mas por que raptar Wendy, e não outro refém de maior valor (na época Peter Pendragon ainda não era Pendragon, não tinha crescido e não era rei, era só um elfo qualquer). Resposta: nenhum motivo, a não ser tentar fazer a história avançar artificialmente.
Por que Axel e Livith têm que se casar? Não é uma prática da cultura élfica e não há nenhuma utilidade para os elfos, que guardam rancor dos humanos, não tem qualquer utilidade para uma aliança com os humanos (Peter Pendragon não quer guerrear como s gigantes antes de Axel chegar ao Nunca), visto que são os seres mais sábios e fortes do mundo, vivem isolados do resto do resto do mundo (e seu território só pode ser alcançado se os elfos assim o desejarem). Resposta: nenhuma razão.
O desencadear da “Primeira Guerra Mundial de Nova Éther” é a quebra do tratado estabelecido entre humanos e gigantes. No entanto, Jack, a criança humana em território gigante, está lá como filho de uma convidada de Brobdingnag. E portanto, não há realmente uma quebra do tratado, tornando a guerra ilógica.
E no assunto da guerra aparece uma incoerência impressionante. O autor estabelece regras próprias ao mundo por ele própria para se guerrear. Até aí tudo bem, mas quando existem contradições entre as regras de guerra e as outras regras políticas, então há incoerência na trama: traições no âmbito geopolítico são normais, porém não guerrear de acordo com as regras pré-estabelecidas é inaceitável (a justificativa dada é que quando se trai na guerra, se trai na política). Incoerência enorme, não é? Isso sem falar da existência de milícias (no momento da declaração de guerra, Rei Anísio manda convocar as milícias), que por definição não lutam de acordo com as regras de guerra.
Quanto à filosofia da obra, que nunca foi de meu agrado, desta vez ela se torna perigosa.
O livro segue durante todo seu desenvolvimento uma mesma linha: crise de fé, a espera por um milagre e realização do milagre. Aqueles que vivem de acordo com as regras divinas tornam-se merecedores e Deus olha por esses seres.
Onde as idéias se tornam realmente perigosas, é no momento em que o autor propõe que uma guerra não é sempre a solução a um problema (idéia louvável), porém uma guerra religiosa é sempre legitima. A idéia é transmitida pelo Conselheiro Verde, presente no conselho que decidirá a guerra ou não, que diz que não pode conviver com uma guerra, porém se for para resgatar a ressurreição do homem sagrado, do messias, então tudo bem, mesmo que seja uma mera probabilidade. Porém a idéia está presente em toda primeira parte do livro: guerra, talvez, porém guerra religiosa sempre sim. Assim, Rei Anísio utiliza este argumento para convencer e motivar todos os contrários a idéia de uma guerra em que as chances de sobrevivência forem no máximo escassas: convence os conselheiros reais e os soldados, quando discursa antes de iniciarem a marcha de guerra. Draccon, ao escrever isso e colocá-lo na boca de seus heróis, não se torna melhor que um fanático religioso qualquer, como Bin Laden, misturando de forma retrógrada política e religião.
Enfim, o autor veicula uma segunda idéia inaceitável: o genocídio é normal a partir do momento que os exterminados forem maus. É desta forma que o autor coloca o combate entre gigantes e elfos, sendo estes últimos os representantes e protetores divinos da passagem entre mundo físico e mundo divino. Os elfos querem aniquilar os gigantes pela simples razão que consideram estes maus (apelando para o maniqueísmo presente em toda a saga). Se pensarmos assim, como decidir quem é bom e quem é mau? Afinal, pontos de vista opostos sempre se consideram bons e maus. Exterminamos todos então?
A única coisa que se salva na totalidade da obra é o epílogo, este sim uma homenagem e um desejo singular pela vida, e merecedor dos melhores elogios.
Aqui acabam os SPOILERS, e começam considerações finais sobre a trilogia.
Quando adquiri e comecei a ler Dragões de Éter, me deixei tentar por inúmeros comentários positivos. Porém ao ler a totalidade da obra, descobri um trabalho mediano na melhor das hipóteses.
Não se pode criticar a consistência do autor, que mantém um estilo e idéias parecidas ao longo de toda a saga. Quem gosta do primeiro, provavelmente vai gostar dos outros dois, e vice-versa.
Porém, me parecem perigosas e retrógradas muitas das idéias veiculadas pelo autor ao longo de sua obra, e só isto condenaria seus livros. Adiciona-se um estilo que não convence, e um péssimo domínio da estrutura de sua obra, sem saber direito para que servem elementos e personagens introduzidos a todo momento.
A verdade é que existem inúmeras obras de fantasia melhores por aí, e o fato de o autor ser brasileiro não pode ser considerado suficiente para designar esta como uma referência do gênero. Muito pelo contrário. Se o interesse for a releitura de fábulas e contos de fadas, recomendo Fables (Fábulas em português), uma obra em quadrinhos de Bill Willingham.
Fica o desapontamento e o repúdio a algumas ideologias infelizmente presentes nas mentes humanas.