spoiler visualizarMar 17/07/2022
A humanidade nunca será livre de sua Contradição
Em Ritos de Passagem, segundo volume da Trilogia Xenogênese, Octavia Butler conta a história de Akin, um construto humano-oankali filho de Lilith e sua família alienígena.
Em uma espécie de trajetória quase Bíblica, Akin é raptado por rebeldes humanes por parecer uma criança humana, por preencher anseios de almas que já não podem reproduzir-se, e é criado por três anos entre humanes. Oankali decidem deixá-lo ali, para aprender mais sobre a espécie que lhes confunde tão profundamente, sobretudo por possuir o que chamam de Contradição: a inteligência necessária para prosperar atrelada à um terrível senso hierárquico.
Esse senso, o grande Mal humano na visão dos Oankali, está codificado nos genes da espécie como seria com qualquer outra dependente de tal tipo de organização, e por isso, se deixada sozinha, a humanidade se destruíria. Akin luta portanto não apenas contra as crenças humanas e suas organizações sociais, mas a sensação de estar em guerra com o inevitável. Oankali acreditam que deixar a humanidade sozinha, mas equipada para reconstrução, é uma crueldade. Humanes sempre se destroem afinal, mas Akin é enviado, construído como um possível salvador, uma nova perspectiva que apresentará uma saída - Marte.
O que significa para a humanidade recomeçar em Marte? É intrínseco da experiência humana ser terreno, necessitar de todas as características naturais relacionadas a criação da espécie, ou seria algo puramente social, um imaginário fantástico que Oankali jamais seriam capaz de compreender? Há apenas uma cena em toda a trilogia Xenogênese, até então, que trata de arte. Encontra-se em Ritos, numa súbita apresentação de Shakespeare, um monólogo que assalta Gabe, ex-ator, quase como instinto. Qual seria o uso de tais impulsos se tudo é biologia? Butler não se dedica a responder - sua obra é de crítica, contemplação, e talvez... esperança.
O determinismo biológico, conflito central da narrativa, é acompanhado infelizmente do fundamentalismo que tão nitidamente separa macho e fêmea e confunde o social com biólogico numa profundidade que ignora possibilidades além do heteronormativo, e que continua deixando extremamente previsíveis as relações humanas. Há uma exceção na violência de Neci e mente aberta de Gabe, mas em sua maioria personagens humanes agiram de acordo com comportamentos basais atribuídos aos sexos.
Não só, a discussão fundamental do propósito humano parece terrivelmente fadada a começar e terminar na capacidade reprodutiva, uma visão redutiva das habilidades das pessoas e talvez até capacista. Há uma dificuldade muito maior de Butler de limitar o que seria crítica e o que seriam crenças reais em sua narrativa, quando tudo é tratado com igual seriedade contemplativa. Se isso é uma paródia do ridículo humano ou uma crítica que acaba se tornando aquilo que critica; cabe ainda a quem lê.
Por hora, o horror latente em Despertar é muito menos presente aqui, dando lugar a discussões francas a respeito da natureza humana. Com uma prosa simples e direta, mas não carente de ritmo, Butler prossegue em seu convite para avaliarmos facetas da nossa existência que causam desconforto, repensar relações, e talvez, quem sabe, nos rebelar contra a biologia.