Luiz Pereira Júnior 06/03/2022
Entretenimento, reflexão, conhecimento...
No início do feriadão de Carnaval, cheguei em casa horrivelmente cansado do trabalho. Como leitura me acalma, resolvi ler algo por pura diversão, por mero entretenimento, sem me preocupar com linguagem, crítica social, moral, ética e bons costumes.
É como pagar para ver um filme de super-herói (todo o mundo sabe como vai terminar – o herói salva o dia mas há sempre uma pontinha solta para a continuação em outro filme com mais do mesmo, os personagens parecem ter saído de uma forma de bolo – tudo igual de um filme para outro, os diálogos parecem ter sido vítimas de um control C +control V e por aí vai). Enfim, queria apenas um entretenimento puro e simples.
Resolvi então ler uma história de ação ou de terror. De preferência, contos ou novelas, que são mais curtos e posso parar a leitura para voltar ao trabalho. Então, minha escolha recaiu em um dos livros mais antigos de Joe Hill. E, como quase sempre faço, comecei a ler pela ordem do que me agradava na sinopse de cada conto. E é claro que sinopse é uma coisa, concordar com ela é outra. Eis o que pensei ao terminar a leitura de cada conto:
Nas alturas – o terceiro conto do livro foi o primeiro a me despertar a curiosidade. Um jovem resolve saltar de para-quedas por ter prometido a uma amiga com câncer que cumpriria um dos desejos que ela não teve tempo de realizar. Fazer isso nem é tão altruísta assim, pois ele queria na verdade impressionar a amiga de ambos, por quem estava apaixonado há longo tempo. Ao saltar, ele cai em cima de uma nuvem sólida que o segura e o retém por algum tempo (indeterminado), materializando (sem sucesso, diga-se de passagem) o que ele quer. Um bom conto, mas arrastado como uma nuvem empurrada por uma brisa. Cenas e situações se repetem, pois, apesar da boa ideia inicial, como desenvolver uma história em que só há um personagem em cima de uma nuvem? Uma observação: décadas atrás, Stanislaw Lem escreveu um livro chamado “Solaris” (transformado em pelo menos dois filmes) em que uma aeronave chega a um planeta coberto por nuvens e, ao adentrar nelas, cada personagem tem seu maior desejo transformado em realidade (nesse romance, a esposa morta do protagonista reaparece em carne e osso, retirada do inconsciente dele durante o sono; no conto de Joe Hill, a amada do protagonista reaparece em forma de nuvem, retirada do inconsciente dele durante o sono). Estranho o autor não ter feito nenhuma referência a essa obra, ele que sempre costuma dar o mérito a suas fontes de inspiração;
Chuva – um dos melhores contos do autor. Uma chuva de agulhas mata a população de uma pequena cidade nos Estados Unidos e, com o desenrolar da história, vemos que a catástrofe foi mundial. Uma jovem lésbica tem sua amada e a sogra morta pela chuva de agulhas e decide ir encontrar o sogro em meio ao caos que reina no mundo. Abordando temas completamente relevantes e atuais, o autor acaba por construir um relato de enorme crítica social em uma história com o dom dos melhores vira-páginas produzidos pelo pai. Homofobia, fanatismo religioso, desmandos políticos, futilidade das mídias sociais, aspectos do cenário político internacional (o livro foi escrito em 2019 e, na página 441, encontramos a sentença “A Rússia se aproveitou do caos internacional e invadiu a Ucrânia”), enfim, uma demonstração clara de que uma história pode ser lida com prazer ao mesmo tempo em que mexe com nosso cérebro;
Nos livros de Stephen King, gostava das referências musicais mas não me identificava com elas, pois eram da década de 1960 e não diziam grande coisa para mim e neste conto – do filho dele – encontrei referências às músicas que eu costumava cantar (horrivelmente) quando escutava meus LPs na distante década de 80 (Hello de Lionel Ritchie, Total eclipse of the heart de Bonnie Tyler...). A música que amávamos em nossa juventude permanecerá até o fim de nossos dias, e a cada dia acredito mais nisso.
Ainda em relação ao conto acima: a imagem que ilustra a página inicial me surpreendeu e, no sentido mais honesto e real da palavra, me emocionou. Sem usar aquelas imagens batidas de livros de terror (sangue, tripas, miolos, globos oculares, vermes e coisas do tipo), Renae de Liz e Ray Dillon (os ilustradores) captaram a imensa dor que sentimos pela morte de um ser querido apenas fazendo com que o leitor olhe a figura de um gato que morre. Sem sangue, sem tripas, sem nada disso... apenas o olhar de um gato...;
Instantâneo – um rapaz vítima de bullying por seu peso descobre que a sua vizinha idosa esquece suas lembranças devido ao Alzheimer. Ela afirma que é um estranho com uma máquina fotográfica que tira suas lembranças ao tirar suas fotos. Ele resolve investigar, confirma o terror (não vou estragar a surpresa de como ele consegue isso) e inicia uma perseguição ao ser sobrenatural (de quem pouco sabemos). Enfim, um bom conto, nada de excepcional e que pega para si alguns dos temas mais caros do paizão do autor (o quase onipresente bullying juvenil, as memórias perdidas da juventude, o afeto por quem cuidou de nós, o sobrenatural como causa e explicação do cotidiano, a solidão e o envelhecimento). Um bom conto, como já disse, que vale a pena o tempo gasto com ele, mas com aquela sensação de que já li isso em algum lugar escrito por alguém da mesma família;
Carregado – um segurança de shopping, ao tentar impedir um tiroteio, mata, sem querer, uma mulher grávida e seu filho ainda não nascido e, a seguir, mata um rapaz que testemunhou toda a ação. Uma jornalista começa a esclarecer os fatos (sempre se lembrando de um trauma de sua infância também relacionado ao uso de armas). Mortes e mais mortes nesse conto bem narrado (por vezes, com alguns detalhes desnecessários e, sinceramente, não vi razão alguma para o incêndio que ameaça destruir a cidade – talvez algo simbólico, mas, mesmo assim, desnecessário a meu ver). Explorando o conflito racial em seu país (parece-me que o autor descobriu um de seus temas preferidos, distanciando-se do pai), o direito ou não a andar armado e o poder manipulativo da imprensa, Joe Hill relata o horror cotidiano de nossos dias, às vezes tão banais que esquecemos o quão assustador ele pode ser.
Nem preciso dizer que valeu a pena a leitura desses contos longos (ou novelas, no sentido literário, se preferir). Estava à procura de entretenimento, como disse no primeiro parágrafo, mas eles me deram material de pensamento, para quem sabe mudar algo em minhas opiniões e ideias. E que mais eu posso querer de uma leitura além de me entreter, de me fazer pensar e de me transmitir algum conhecimento?