Dhiego Morais 09/04/2018De volta para casaHá algo de mágico em estar de volta a casa. E há algo de ainda mais especial em se encontrar em um novo lar. A qualquer momento uma brecha pode surgir, um pequeno rasgo no tecido da realidade, e então, dobrando-se entre os caminhos da Lógica e do Absurdo, um portal, uma pequena porta pode se abrir. Brotando de maneira completamente imprevisível, somente uma parcela muito pequena da população é capaz de encontrar essas pontas soltas, essas portas ocultas, e, depois de ir e vir, menos ainda são capazes de reencontrar o caminho. A porta que surge. Não, não estava lá. Uns passos incertos; coração que acelera. Atravesse, então, andarilho, e conversemos sobre a sua história.
Lançamento de 2018, a editora Morro Branco traz aos seus leitores mais uma obra bastante elogiada no mercado internacional: De Volta para Casa. Escrito pela californiana Seanan McGuire, primeira pessoa a ser indicada cinco vezes em uma mesma edição do Hugo Awards, o primeiro livro da série foi contemplado com três dos mais significativos prêmios da indústria de fantasia e ficção científica internacional: o Hugo Awards, o Locus Awards e o Nebula Awards.
“Agora eu sei que, se a gente abrir a porta certa no momento certo, pode finalmente encontrar um lugar onde se sinta em casa”.
Com De Volta para Casa, Seanan entrega aos seus leitores uma obra enxuta, mas que impressiona pela maneira como a narrativa é conduzida. Suas poucas páginas podem passar uma primeira impressão de que a história tenha sido trabalhada de maneira superficial, no entanto, o que ocorre de fato é uma condução da trama primorosa. Seanan a adorna com personagens encantadores, enquanto tinge silenciosamente as páginas com os ares de uma magia nostálgica, capazes de conectar cada leitor a sua época de infância, onde tudo era impressionante e fantástico.
Nesse primeiro volume da série Crianças Desajustadas, embarcamos em uma viagem com certa impressão de história batida e incansavelmente abordada anteriormente, porém, o que se encontra em vias, de fato, é a sequência da maioria das histórias que os leitores já cruzaram em algum momento de sua vida. Grandes obras contaram as viagens fabulosas de crianças e jovens que atravessaram seus portais mágicos e até então inexistentes para conhecer um mundo de aventuras recheadas de misticismo, ficção e magia. Mas, e se depois de atravessarem seus desafios, depois de cruzarem a fronteira até estar de volta à realidade, o que de fato ocorreria com a vida dessas crianças excepcionais? Qual é a história depois da própria história? De Volta para Casa é uma novella que esboça o cenário de crianças, de jovens que depois de desaparecerem por caminhos inusitados, de escorregarem por frestas ocultas ou serem aspiradas por buracos minúsculos, voltam a emergir ao seu lugar de origem, e, agora, deslocadas dessa realidade, sonham com o dia que conseguirão reencontrar o caminho de volta para... casa.
Embora tenha um começo que confunde o leitor, Seanan McGuire é habilidosa com a sua narrativa e conduz com tranquilidade a história, conseguindo introduzir reflexões extremamente contemporâneas acerca de nossa sociedade, além de produzir um livro dotado cargas emocionais equilibradas e de uma representatividade muito bem-vinda, com personagens assexuais e transexuais que encorpam positivamente a obra.
“O amor deles queria consertá-la, e se recusava a ver que ela não estava quebrada”.
Nancy é uma adolescente que retornou a nossa realidade. Incapaz de se readequar, pelo menos aos padrões de seus pais, a jovem é deixada em uma espécie de clínica de reabilitação especializada nesses tipos especiais de casos de identidade. Assim, então, conhecemos o Lar de Eleanor West para Crianças Desajustadas, que mais parece uma mansão com ares de terapia familiar.
O Lar de Ely-Eleanor West concentra várias garotas e alguns poucos rapazes que passaram pela mesma experiência de Nancy, ainda que em universos fantásticos diferentes. Cada um desses lugares mágicos e peculiares teve a capacidade de confortar as crianças, que depois de passarem certo tempo por lá, passaram a se sentir, finalmente, fazendo parte de algo. Inexistindo linearidade temporal entre as dimensões, anos podem se transformar em poucos dias de ausência.
Nancy é diferente fisicamente, tendo cachos de seu cabelo de outra cor, pois passou seu tempo em um Submundo, no Mundo dos Mortos. Outras crianças, como Christopher e as gêmeas Jack e Jill também visitaram universos rejeitados pelas demais crianças, por sua morbidez ou por serem sombrias e absurdas demais.
Falando em personagens, além das já citadas, temos Sumi, uma garota de personalidade forte, divertida e mente quase louca, mas que cativa absurdamente. Kade é outra figura especial e tem bastante destaque ao longo da história.
Em seu lar de reabilitação, Eleanor West, uma senhora de mais de sessenta anos reconforta os jovens e as jovens que ainda sonham em retornar para o que chamam de casa. Enquanto aguardam encontrar a porta certa, o lar atravessará uma mudança assustadora, que pode destruir as esperanças de todos os internados.
“Você não é o arco-íris de ninguém. Você não é a princesa de ninguém. Você não é o portal de ninguém além de si mesma, e a única pessoa que pode lhe dizer como sua história termina é você”.
Com um final duplo, sendo o primeiro previsível e o segundo constituindo uma metáfora linda, o livro se encerra perfeitamente, inclusive, funcionando como livro único, se assim o leitor desejar.
De Volta para Casa é uma experiência apaixonante, capaz de refrescar a fantasia contemporânea com suas personagens encantadoras em um cenário conhecido do público leitor. De maneira bastante natural, Seanan McGuire guia sua narrativa para uma fantasia embebida de uma realidade que surpreende, construindo, graciosamente, uma obra que facilmente pode se tornar um clássico de nossa época.
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