Ramon.Amorim 15/09/2022
Quando nascemos, quando entramos neste mundo, é como se firmássemos um pacto para toda a vida, mas pode acontecer que um dia tenhamos de nos perguntar: "Quem assinou isto por mim"?
Na mesma capital de Ensaio sobre a Cegueira, quatro anos depois de os citadinos terem cegado sem qualquer explicação, um novo fenômeno acomete os moradores. Ensaio sobre a lucidez começa em uma seção eleitoral num domingo em que a população parece recusar ir às urnas. Na manhã chuvosa, poucas pessoas resolvem sair de casa para votar. Apenas às 16 horas, como se um alarme tivesse despertado a população, homens e mulheres vão às seções para escolher seus representantes. O resultado das urnas, contudo, é surpreendente: os votos válidos não chegam a 25%; mais de 70% da população votou em branco.
No domingo seguinte, um novo pleito, mas o resultado é o mesmo: a maioria da população novamente votou em branco. Apesar de todas as artimanhas do governo para desvendar o que julga existir de complô por trás de tamanha rebeldia dos eleitores, não consegue identificar autoria alguma. A população parece mesmo agir de forma coordenada, mas não há reuniões, propaganda, liderança, nada que permita identificar alguma coletividade por trás do que está acontecendo.
Entre iniciativas e contra-iniciativas de parte a parte (governo e o povo), Saramago cria cenas belíssimas envolvendo o que constituiria a "lucidez" política das pessoas. Registro ao menos quatro grandes momentos deste livros que estão, com certeza, entre as melhores cenas que já li de Saramago e que constituem um verdadeiro monumento artístico de crítica ao sistema político.
Na parte final do livro temos o retorno dos personagens de Ensaio sobre a cegueira (o médico, a mulher do médico, a mulher da venda preta e o cego, o primeiro cego e sua esposa) e é quando os acontecimentos dos dois livros se encontram.
O campo político precisa desenvolver estratégias para sua própria sobrevivência. Ensaio sobre a lucidez expõe cruamente o que há de longínquo entre a gente comum e a política, mas também, impiedosamente, como as pessoas, na vida real, estão a anos-luz de alguma inteligência política que se possa chamar minimamente de razoável.