bi-a 19/09/2022
"Pensem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece a paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não."
A memória como a essência do ser humano em meio à miserabilidade, ao apagamento moral, mental e físico de uma massa. É um resquício de civilização naquele que já não sabe se ainda é além de números. O campo de concentração bestializa os prisioneiros, demarca a sua existência e retroage o tempo do futuro para o passado. Nas condições mais torpes, o homem e a fome se confundem.
Os relatos de Primo Levi não são apenas relatos de como sobreviviam dia após dia as pessoas aprisionadas no campo, mas conta o processo de destruição do homem. As memórias individuais e coletivas que servem como âncoras para a identidade do ser, desvanece-se em uma multidão, agora anônima, sem rosto, os submersos, constantemente renovada, mas sempre igual. Uma multidão em que o vazio já não tem mais espaço e o sofrimento e a morte não são mais temidos. Uma multidão em que não há diferença alguma entre os que ficam e os que vão.
Diante da morte de um condenado no campo, essa massa não reage. Não há um resquício de revolta nem de fé. Isso pode explicar o fato de que Primo Levi nos conta tudo isto sem exprimir um quê de vingança contra quem fez isto a ele. Mas o campo por si só não fez isso ao homem. O homem que sufocou a humanidade do seu próximo. O homem que decidiu que podia julgar quem viveria e quem morreria. O homem que destituiu a essência do outro homem. É isto um homem?
Nos últimos dias no campo, ao final da guerra, Lourenço lembra o autor, ajudando-o, que ainda há um mundo justo, não corrompido pela selvageria e engolido pelo ódio. Quando os aprisionados decidem dividir seus pedaços de pães com Levi e os demais que lutavam para que todos sobrevivessem até a chegada do resgate, então vemos o primeiro sinal de
humanidade novamente desde o primeiro dia relatado no campo.
Elie Wiesel, escritor e sobrevivente de Auschwitz, ao saber da morte de Lévi, afirmou que: 'Primo Lévi morreu em Auschwitz quarenta anos depois. Apesar de ter sobrevivido, de ter conseguido sair dessa massa anônima, de resgatar a sua humanidade, as memórias desses dias atrozes - aqui poderia deixar esses dias sem adjetivos, pois não há palavras que descrevam o que essas pessoas vivenciaram - no campo de concentração aprisionaram Primo Levi até a sua morte em 1987. É por isso que ao ler o livro percebi como a memória exerceu um papel fundamental durante esses anos na vida de Levi.
"Não é humana a experiência de quem viveu dias nos quais o homem foi apenas uma coisa ante os olhos de outro homem".