Henggo 03/05/2024
Em defesa de uma escrita sem medo
Mais uma imersão na mente do Orwell, novamente embasbacado com a visão que ele tem sobre a sociedade de meados do século XX e como, oitenta anos depois, continuamos imersos nos mesmos erros. Quem sabe, até com mentalidades piores...
O QUE É FASCISMO? - Quer maior atualidade do que as considerações sobre o uso da palavra "fascista"? Orwell, lá de 1944, em meio ao esforço de guerra, aponta como a palavra virou um mero xingamento e o risco de fazermos isso. No momento em que você degrada o uso de uma palavra, você contribui para que um termo sério, que aponta erros e massacres, se torne popularesco, jocoso e sem tônus narrativo. A palavra perde sua força enquanto aquilo que ela representa ganha força na invisibilidade do termo agora usado como piada.
ARTHUR KOESTLER - Ensaio sobre o escritor húngaro Arthur Koestler em que Orwell aborda o modo como os próprios escritores ingleses se afastam de abordar assuntos considerados delicados, deixando esse papel para escritores estrangeiros. Ler esse texto me lembrou do discurso da Viola Davis quando ela ganhou o Oscar de Atriz Coadjuvante em 2017 no filme "Fences". Durante o discurso, a atriz citou o escritor norte-americano August Wilson ao dizer:
[...] há um lugar onde todas as pessoas com os maiores potenciais são reunidas. Um lugar, e este é o cemitério. As pessoas me perguntam o tempo todo, ?que tipo de histórias você quer contar, Viola?? E eu digo: exumem aqueles corpos. Exumem aquelas histórias. As histórias das pessoas que sonharam alto e nunca viram esses sonhos fruírem. Pessoas que se apaixonaram e perderam seus amores. [...]
Eu lembrei disso porque Wilson "exuma" em seus livros muitas das histórias perdidas do povo preto dos Estados Unidos. Voltando ao que Orwell aborda aqui, é a necessidade de não permitirmos que outros contem a nossa história. Esse ensaio me tocou muito porque desde que comecei a escrever meus livros, lá quando eu tinha 12 anos, eu decidi contar as histórias aqui de São Luís, as histórias do Maranhão e, acima de tudo, as histórias do quilombo de Jacareí dos Pretos de onde minha família vem. Orwell clama para que desenterremos, nós mesmos, as nossas raízes.
MEMÓRIAS DA LIVRARIA - Eu confesso que sempre tinha uma visão meio idilica de como seria o trabalho em uma livraria. E eis que Orwell me deu, digamos, um belo de um choque de realidade. Claro, direcionado à outra época e realidades, contudo, ainda assim capaz de fazer pensar sobre os tipos de pessoas que frequentam, por exemplo, um sebo e as confusões pelas quais passam os funcionários.
WELLS, HITLER E O ESTADO MUNDIAL - "[...] nacionalismo, intolerância religiosa e lealdade feudal são forças muito maís poderosas do que ele mesmo (H. G. Wells) descreveria como sanidade. (...) As pessoas que mostraram melhor entendimento do fascismo são, ou aquelas que sofreram diante dele, ou que têm uma tendência ao fascismo elas próprias. [...]"
E assim Orwell tem coragem de criticar Wells, à época uma referência literária geral, e nos dá uma lição importante: a fama e a importância de alguém não pode ser salvo-conduto para evitar críticas. Simples assim.
COMO MORREM OS POBRES - Já tinha lido este ensaio na antologia homônima "Como morrem os pobres e outros ensaios". Porém, foi como ler pela primeira vez. A capacidade de um escritor em traduzir sua época em palavras é algo embasbacante. Escrito no início da década de 1930, este texto mergulha no sistema de saúde público de forma serena e sem firulas narrativas. É cru, por vezes cruel, e apesar de se tratar de algo do início do século XX, quem conhece o serviço público de saúde aqui do interior do Brasil, por exemplo, verá que muitas coisas permanecem quase iguais.
DENTRO DA BALEIA - Comprei uma outra antologia do Orwell exatamente por ela ter o título deste artigo. Fiquei bem curioso e valeu cada parágrafo. Uma frase marcante para mim foi: "Bons romances são escritos por pessoas que não estão amedrontadas.". Orwell imerge na "baleia" em uma jornada pelas entranhas da literatura, tomando o livro "Trópico de Câncer" de Henry Miller como premissa. Confesso que em certas partes, específicas sobre o livro, me deu enfado. Contudo, reconheço que são partes importantes para que o Orwell defenda uma escrita corajosa, sem medo de tocar nas feridas; uma escrita que esteja de acordo com as convicções de seu autor e independente do que editores e leitores achem. Lembra do que ele falou sobre o Arthur Koestler? A necessidade de contar nossas histórias sem medo? É sobre isso. Pensando como escritor que sou, foi um belo incentivo.
ATIRANDO NUM ELEFANTE - Mais uma vez, tive a oportunidade de acompanhar as memórias do George Orwell para além do ofício da escrita. Jamais soube que ele tinha sido oficial do exército na Birmânia. E aqui foi massa porque você percebe como o olhar mais apurado de um escritor faz diferença ao lidar com o mundo fora das letras. A crítica ao imperialismo inglês, a empatia com os cidadãos birmaneses, o reconhecimento de si como um estranho opressor, a humanização do elefante, a força da empatia ao reconhecer a pequenez dos próprios atos, tudo está aqui. Um ensaio intimista, meio melancólico e, acima de tudo, social. Tocante.