Bea Romanello 17/03/2021
Precisamos — junto com Delia — entender quem é Amalia
Depois de mergulhar na tetralogia napolitana entendi que PRECISAVA ler tudo que Elena Ferrante já escreveu. E isso não é uma tarefa fácil, porque Ferrante não poupa palavras, joga fatos duros e difíceis de digerir, e em nenhum momento está preocupa se está sendo crua demais. Ler Elena Ferrante é uma experiência visceral e que te deixa de cabeça pra baixo depois de terminar.
Nesse romance temos a relação de uma mãe e uma filha, e não é uma boa relação. Amalia e Delia — assim como Lila e Lenu na tetralogia — vivem num contexto violento e machista, afetando, não só a relação com os homens das suas vidas, mas também a relação entre elas. Amalia foi violentada a vida inteira — fisica e emocionalmente — e isso impacta a sua maternidade e a relação com as filhas. Quando sua mãe morre, Delia não chora, fica muito confusa com os últimos acontecimentos da vida de sua mãe e indignada com a memória que tem dela.
"Nos sons que eu articulava de forma desconfortável havia o eco das brigas violentas entre Amalia e meu pai, entre meu pai e os parentes dela, entre ela e os parentes do meu pai. Impaciente, eu logo voltava ao meu italiano, e ela se acomodava no seu dialeto. Agora que Amalia estava morta e eu podia apagá-lo para sempre, junto à memória trazida por ele, senti-lo em meus ouvidos me deixava ansiosa."
Ao longo do romance conhecemos três homens importantes na vida delas — o marido e o irmão de Amalia, e Caserta, um amigo-amante-companheiro de Amalia. Nenhum desses homens enxerga Amalia como uma mulher com vontades e desejos, ela é um objeto de prazer, de reprodução e de servidão, Amalia está ali para eles. Podemos ver como as memórias de Delia em relação a mãe estão atreladas as visões desses homens e que Delia tem dificuldade de ver quem a mãe de fato é.
"Talvez eu não tolerasse que a parte mais secreta de mim usasse aquela sua solidariedade para validar uma hipótese cultivada igualmente em segredo: a de que minha mãe levava inscrita no corpo uma culpa natural, independente da sua vontade e das suas ações, aparecendo prontamente quando necessário, em cada gesto, em cada suspiro."
O texto de Ferrante é sufocante, mas impossível de largar, precisamos — junto com Delia — entender quem é Amalia, o que a motivava e como foi a vida e a morte dessa mulher. Mesmo gostando desse livro, ele ainda fica pra trás em relação à tretalogia — talvez pelo tempo da narrativa, aqui temos uma história de poucos dias, enquanto conhecemos a vida inteira de Lila e Lenu. Ainda sim, Ferrante sempre surpreende e nos dá um belo soco no estômago com sua prosa.
"Senti que aquela roupa velha era a narrativa final que minha mãe me deixara, e que, naquele instante, com todos os artifícios necessários, me caía como uma luva. [...] Amalia existira. Eu era Amalia."