Javalis de Chernobyl 19/04/2024
“O destino, como Merlin sempre nos ensinava, é inexorável. A vida é uma brincadeira dos Deuses, costumava dizer Merlin, e não existe justiça. Você precisa aprender a rir, disse-me uma vez, ou então vai simplesmente chorar até morrer.”(Pág.158)
Bernard Cornwell se aprofunda numa pesquisa histórica sobre a passagem da antiguidade para a "Idade das Trevas", período pós-queda do domínio romano na Grã-Bretanha, em que a Ilha, que mais tarde se tornaria a Inglaterra, é tomada pelas ruínas de um mundo em queda, guerras civis, e os efeitos da colonização, passada e presente e futura.
No primeiro livro da trilogia, ele tenta recriar as lendas do Rei Arthur com base numa análise histórica, onde a imaginação e a criatividade preenchem as lacunas do trabalho historiográfico. Nesse sentido, é impossível sabermos o que é realidade, o que é fato histórico, o que é ficção, e o que é imaginação. A história é narrada por Derfel Cadarn, um soldado de Arthur, que, segundo fontes, teria se tornado monge cristão ao fim da vida.
Um ponto forte do livro pra mim é o lado antropológico da cultura britânica no século V, na passagem da Antiguidade pro período Medieval. Não sei o quão profundas foram as pesquisas de Cornwell pra esse livro, e ele claramente tem intenções nacionalistas (embora não necessariamente românticas), mas acho interessante a forma como ele descreve a cultura autóctone dos povos celtas que resistem numa Britânia colonizada pelos romanos, deixada às ruínas, em princípios de dominação do catolicismo e ao mesmo tempo constantemente assediada pelos saxões (que se não me engano, são povos germânicos).
Dentro disso, outra coisa que me chama atenção é justamente a relação dos povos autóctones com datas específicas de mudanças de estações (como o equinócio descrito na página 58), que acabam tornando-se origem de rituais religiosos pagãos, e mais tarde, cooptados pelo Catolicismo como símbolos de sua devoção (como nascimento e a morte de Cristo no Natal e Páscoa, por exemplo). Ou seja, historicamente a humanidade se conecta a esses momentos do ano por causa de sua ligação com a Terra, primordial ao homem, datas que acabam por ser re-significadas pela Igreja, e, na sociedade contemporânea, retomadas pela cultura de consumo capitalista, onde tais festividades sagradas tornam-se motivadas pelo lucro de propagandas, consumo de presentes, chocolates, etc.
Essa relação da colonização também se reafirma na comparação entre os soldados de Tewdric, rei de Gwent: britânicos treinados a lutar, agir e até se barbear como romanos. Sua comparação com os soldados de Uther é descrita por Derfel, que, enquanto um jovem com sonho de se tornar guerreiro, observa aquilo com estranheza e admiração. Toda a descrição de Glevum, antiga ocupação romana agora tomada pelos britânicos, é bem interessante pela descrição arquitetônica e da engenharia dos mesmos.
O fato de Derfel ser saxão demonstra a diversidade étnica existente na Inglaterra desde essa época, uma sociedade extremamente miscigenada, recebendo influências de diversas culturas ao longo dos séculos. Acho que a escolha de um protagonista não-britânico reflete na ideia da diversidade étnica na Inglaterra.
Na minha opinião essa trilogia é a melhor narrativa ficcional sobre o período medieval que eu já consumi. Li a trilogia entre 2017 e 2019, se não me engano. Pegando pra reler agora, anos depois, vamos ver se essa opinião se mantém. Fato é que eu não me lembro de nenhuma obra sobre Idade média que tenha me impactado tanto pela qualidade de escrita, acuidade histórica e crueza narrativa.