Exusiaco 31/07/2015
Trabalho de fôlego para compilar mitos iorubanos dado que a tradição candomblecista é calcada na oralidade sendo que as fontes escritas podemos contá-las no dedo. Seja na África, em Cuba, com a santeria, ou no Brasil, os mitos iorubanos se sedimentaram com algumas variações entre umas e outras. Na cosmogonia do Candomblé, para a criação da terra a partir de Olorum, Olofim em Cuba, foi designado Oxalá, mas, com intervenção de Exu, a obra foi realizada por Odudua, orixá hoje inexistente no Brasil, como tantos outros que aqui caíram em desuso em detrimento de Cuba e África e vice-versa.
Muitas variações e contradições são entrevistas nos orixás, representantes da natureza tanto no que se refere ao mundo natural quanto aos instintos humanos, modelos de comportamento denominados arquétipos.
Das fontes obtidas destacam-se o trabalho de Roger Bastide, Agenor Miranda Rocha com documentos de 1928 ditados por Mãe Aninha, além de Pierre Verger, que diz ser o Candomblé uma rara religião isenta de verdade absoluta, entre outras fontes tanto escritas quanto orais, seja no Brasil, na África ou em Cuba.
Foram reunidos 301 mitos africanos e afro-americanos, número que supera em muito as compilações precedentes. Pelo fato de não haver uma uniformização formal entre as diferentes fontes, Prandi optou por padronizar os mitos na forma dos poemas dos babalaôs africanos, com versos livres e linguagem sintética, mantendo sempre os conteúdos originais das fontes.
Os orixás representam o homem em seu todo contraditório, não estão isento de desejos e num contexto de relativismo moral pautado na intuição e calcado em interditos, tabus e oferendas. O oráculo de ifá, com seus dezesseis odus, onde se conhece o destino, fica a cargo do orixá Orunmilá. Os ritos geralmente são regados com muito ritmo, festas, música, batuques, xirês e giras.
O mesmo mito, contudo, pode sofrer variações extremas. Podemos entrever um diálogo direto entre os orixás e a natureza como um todo. Existe guerra, amor, inveja, bondade, piedade, castigos, piedades, remorsos, vaidades, solidariedade, fraternidade, sendo que o axé constitui a força mística dos orixás, a força vital que transforma o mundo.
Dentro do panteão iorubano dos orixás os instintos humanos de qualquer espécie estão bem representados. Oxum, por exemplo, reúne os melhores instintos da sensualidade e da vaidade feminina. A mulher no candomblé, diga-se de passagem, não se vê dominada patriarcalmente pelos homens. Vislumbra-se um certo feminismo em Oxum e Iansã. Xangô, por outro lado, representante da justiça com seu machado de dupla face, o oxé, é orixá que contém o elemento fogo, solta-o pela boca, havendo nisso um paralelo com o mito grego de Prometeu. Cada orixá tem sua característica arquetípica e o desejo sexual está sempre presente, haja vista a troca constante de casais, parecendo que todos passam por todos, tendo em vista ainda as questões de gênero e homoafetivas, situações de incesto e casos de orixás marcadamente andrógenos.
Transcrevo o mito 282 “Oxaguiã devolve o sexo aos homens”:
Dois príncipes irmãos disputavam entre si
a coroa de seu país.
O irmão mais novo foi o vencedor
e foi proclamado rei.
Ele devia matar o irmão vencido,
como mandava o costume naquele tempo,
para que ele mais tarde não ameaçasse seu poder.
Mas o jovem rei respeitava o irmão mais velho
e poupou sua vida.
Porém, para que o irmão um dia não ameaçasse tomar o poder,
o rei cortou-lhe o pênis,
pois assim ele nunca teria filhos
e sem herdeiros nunca poderia ameaçar o trono.
O jovem rei, contudo, amava seu irmão mais velho
e, para que ele não vivesse sempre só,
deu-lhe uma bela princesa como esposa.
Para que a mulher não se entregasse aos homens,
uma vez que seu marido não podia ter relações sexuais,
o rei mandou costurar a vagina da cunhada.
O infeliz casal foi viver longe da cidade,
trabalhando numa plantação de inhame
que propriedade de Oxaguiã,
o orixá que gostava imensamente de inhame pilado.
O príncipe mutilado cultivava os inhames
e sua mulher os pilava para Oxaguiã.
Viviam pacatamente, mas eram tristes.
Oxaguiã nunca os escutava cantar,
nunca os via dançar,
jamais os ouvia rir.
À noite se deitavam bem juntos na esteira,
mas seus corpos não podiam se penetrar.
Enquanto isso, no reino do irmão castrador,
a peste se abateu e aniquilou a humanidade.
Já quase nenhum ser humano habitava a Terra.
Na plantação de inhame,
o casal continuava sua vida sem prazer,
sem filhos, sem sexo.
Oxaguiã um dia ficou com pena deles,
pois tratava de um homem forte e atraente
e de uma mulher jovem e bonita,
mas eles não podiam saciar seus desejos,
nem produzir uma nova vida.
Deitavam-se juntos na esteira,
mas não podiam se penetrar.
Oxalá então abriu a vagina da mulher
e fez para o homem um pênis novo,
um pênis novo modelado com a massa de inhame,
que às vezes fica duro para fazer sexo.
Desde então, em dias de preceito,
homem e mulher não podem fazer sexo.
Devem abster-se em memória daquele tempo,
quando estavam impedidos de ter o prazer do corpo
e impossibilitados de gerar filhos.
Nesse dia, devem celebrar o orixá
que devolveu o sexo ao homem e à mulher.
Com o Candomblé pulsante, vivo e forte o Brasil fica mais “odara” e acredito ser de grande valia fazer dessa ancestralidade um “dasein” tropical e multi-étnico.