Carla.Parreira 11/10/2023
O erro de Descartes
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O autor usa uma linguagem um tanto científica e a leitura acaba sendo bastante teórica e complexa, mas ainda assim o assunto é interessante. Inicialmente ele relata casos de pessoas que tiveram graves ferimentos na cabeça e também sobre pacientes com tumores no cérebro. Pessoas que têm alguma interferência externa na parte física do cérebro, seja acidental ou por motivos de saúde, geralmente sofre mudança de personalidade, limitações de raciocínio e de tomada de decisões. Ele relaciona isso aos problemas cognitivos das doenças mentais e faz uma espécie de comparação na tentativa de entender melhor o sistema neuro-cerebral. As doenças do cérebro são vistas como tragédias que assolam as pessoas, as quais não podem ser culpadas pelo seu estado, enquanto as doenças da mente, especialmente aquelas que afetam a conduta e as emoções, são vistas como inconveniências sociais nas quais os doentes têm muita responsabilidades. Isso é uma ignorância social básica e completamente infeliz. A finalidade da abordagem neuropsicológica tratada no livro explica a forma como certas operações cognitivas e seus componentes estão relacionados com os sistemas neurais e seus componentes.
O corpo e o cérebro formam um organismo indissociável. O cérebro recebe sinais não apenas do corpo, mas também de alguns de seus setores, de partes de sua própria estrutura, as quais recebem sinais do corpo. O organismo constituído pela parceria cérebro-corpo interage com o ambiente como um conjunto, não sendo a interação só do corpo ou só do cérebro.
Porém, organismos complexos como os nossos fazem mais do que interagir, fazem mais do que gerar respostas externas espontâneas ou reativas que no seu conjunto são conhecidas como comportamento. Eles geram também respostas internas, algumas das quais constituem imagens visuais, auditivas e somatossensoriais.
Essa é a base da mente. Tanto as palavras como outros símbolos são baseados em representações topograficamente organizadas e que, por si só, formam imagens.
A maioria das palavras que utilizamos na nossa fala interior, antes de dizermos ou escrevermos uma frase, existe sob a forma de imagens auditivas ou visuais na nossa consciência. Se não tornassem imagens, por mais passageiras que fossem, não seriam nada que pudéssemos saber. Isso é verdade até mesmo para aquelas representações topograficamente organizadas que não são tomadas com atenção pela consciência, mas que são ativadas de forma oculta. As imagens que reconstituímos por evocação ocorrem lado a lado com aquelas formadas segundo a estimulação vinda do exterior.
As imagens reconstituídas a partir do interior do cérebro são menos vívidas do que as induzidas pelo exterior. Os seres humanos surgiram para a vida dotados de mecanismos automáticos de sobrevivência e ao qual a educação e a aculturação acrescentaram um conjunto de estratégias de tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis, os quais, por sua vez, favoreceram a sobrevivência, melhorando de forma notável a qualidade dela.
Além disso, fora desse duplo condicionamento, as estratégicas supra-instintivas de sobrevivência criam algo exclusivamente humano: um ponto de vista moral que, quando necessário, pode transcender os interesses do grupo ou até mesmo da própria espécie. A natureza, com a sua mania de fazer economia, não selecionou mecanismos independentes para exprimir emoções primárias e secundárias.
Limitou-se simplesmente a permitir que as emoções secundárias se exprimissem pelo veículo já preparado para as emoções primárias. O autor define a emoção como sendo a combinação de um processo avaliatório mental, simples ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocional do corpo, mas também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco cerebral), resultando em alterações mentais adicionais. Todas as emoções originam sentimentos, mas nem todos os sentimentos provêm de emoções. Existem muitas variedades de sentimentos.
A primeira variedade baseia-se nas emoções, sendo as mais universais a felicidade, a tristeza, a cólera, o medo e o nojo. Uma segunda variedade de sentimentos é a que se baseia nas emoções que são pequenas variantes das cinco antes mencionadas: a euforia e o êxtase são variantes da felicidade; a melancolia e a ansiedade são variantes da tristeza; o pânico e a timidez são variantes do medo.
Essa segunda variedade de sentimentos é sintonizada pela experiência quando gradações mais sutis do estado cognitivo são conectadas a variações mais sutis de um estado emocional do corpo. Existem mecanismos neurais que nos ajudam a sentir 'como se' estivéssemos passando por um estado emocional, como se o corpo estivesse sendo ativado e alterado.
Esses mecanismos nos permitem contornar o corpo e evitar um processo lento e consumidor de energia. Podemos evocar com eles uma espécie de sentimento apenas dentro do cérebro. No entanto, esses sentimentos são apenas relativos aos que correspondem a um estado real do corpo. Ao atuar em um nível consciente, os estados somáticos (em grego, soma quer dizer corpo) ou seus substitutos devem marcar os resultados das respostas como positivas ou negativas, levando assim a que se evite ou que se prossiga uma determinada opção de resposta. Mas podem também funcionar de uma forma oculta, ou seja, fora da consciência. Esse mecanismo oculto seria a fonte daquilo que chamamos intuição, o misterioso mecanismo por meio do qual chegamos à solução de um problema sem raciocinar.
A afirmação 'penso, logo existo' sugere que pensar e ter consciência de pensar são os verdadeiros substratos de existir. Como sabemos que Descartes via o ato de pensar como uma atividade separada do corpo, essa afirmação celebra a separação da mente, a 'coisa pensante' do corpo não pensante, o qual tem extensão e partes mecânicas.
A verdade é que existimos e depois pensamos, e só pensamos na medida em que existimos, pois o pensamento é causado por estruturas e operações do ser. A coisa mais indispensável que possamos fazer no nosso dia a dia, enquanto seres humanos é, na opinião do autor e minha também, recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam. É claro que essa não é uma tarefa fácil: tirar o ser do seu pedestal em algum lugar não localizável e colocá-lo num lugar bem mais exato, preservando-lhe ao mesmo tempo sua dignidade e sua importância, reconhecer sua origem humilde e sua vulnerabilidade e, ainda assim, continuar à sua orientação e conselho.