Toni 03/03/2022
Leituras de 2022 | #LendoLygia
As horas nuas [1987]
Lygia Fagundes Telles (SP, 1923-)
Cia. das Letras, 2010, 256 p.
De tempos em tempos, a leitura ou releitura de uma obra de Lygia Fagundes Telles é, para mim, um exercício de reencontro com a excelência na escrita de ficção. “As horas nuas”, seu quarto e último romance, não foge à regra: obra de maturidade, trata-se de uma narrativa profundamente marcada pelo mergulho na psique de personagens complexas, pelo desenrolar de um tempo psicológico ora tenso ora melífluo, pela ambiguidade característica e sempre tão bem manipulada por Telles, pelos jogos de espelhos, memórias e vozes que parecem se complementar apenas para se contradizerem logo em seguida.
Rosa Ambrósio, atriz alcoólatra em decadência, e Rahul, seu gato com vislumbres de vidas passadas, são os dois grandes narradores do romance. Desnecessário dizer que, havendo um gato narrador, eu nem precisaria de outras razões para ler o livro, mas uma ideia boa em mãos menos talentosas não iria muito além de ter sido uma boa ideia. Aqui, a autora consegue articular o olhar felino (e ferino) com o ponto de vista ferido e emocionalmente falido de sua “dona”. Através dessas duas vozes, um sem número de questões e temas atravessam a narrativa, como as consequências da ditadura (o marido de Rosa é um ex-preso político torturado), as primeiras notícias do surto de HIV, as discussões sobre aborto, as crises interiores (provocados por construções sociais externas) que acompanham o envelhecimento, os direitos das mulheres…
Mas “As horas nuas” é, não se enganem, o mais ardiloso dos romances de Telles. Quando menos se espera, há uma guinada narrativa que abandona aquelas personagens até então centrais e passa a se concentrar, ironicamente, no desaparecimento de outra. Um sumiço que beira o fantástico, construído por pistas que muito pouco elucidam o que aconteceu, mas fornecem material suficiente para interpretações realistas de um Brasil feminicida, ou mais fantasiosas, para quem prefere associar arquétipos e mitos ao desnudamento de um inconsciente. Meu favorito continua sendo “As meninas”, mas sinto que cedo ou tarde este aqui me convidará para uma releitura.