spoiler visualizarBeatriz Campos 04/12/2016
O MERCADOR DE VENEZA, William Shakespeare
“O Mercador de Veneza” é uma peça teatral do autor inglês William Shakespeare, uma comédia trágica que teria sido escrita entre 1596 e 1598, época em que a intolerância aos judeus era um fato corriqueiro, mesmo em Veneza a mais poderosa e liberal Cidade-Estado da Europa.
Pela lei, os judeus eram obrigados a viver na velha fundição murada, o gueto da cidade, ao anoitecer o portão era trancado e vigiado por cristãos, durante o dia qualquer um que saísse do beco era obrigado a usar um gorro vermelho. Aos judeus era proibido possuir imóveis, por isso praticavam a usura, o empréstimo de dinheiro a juros, prática essa contrária à lei crista. Os sofisticados venezianos faziam vistas grossas, mas com os fanáticos religiosos a situação era bem diferente.
A trama se inicia quando Bassânio, um nobre veneziano que gastou todo seu patrimônio, resolve viajar para Belmonte, com o intuito de se se candidatar a possível pretendente da dama Pórcia, a qual somente poderia se casar com aquele que conforme requisito estipulado pelo pai, já falecido, desvendasse um enigma envolvendo três baús, sendo essa uma condição para esposar a jovem.
Bassânio não detinha mais de tantos recursos, porém devido ao interesse pela jovem, busca uma maneira de adquirir os três mil ducados necessários para custear a viagem durante três meses. Recorre ao velho amigo Antônio, que também vive certa instabilidade financeira, seus navios e mercadorias estão no mar, e ele promete ser o fiador se Bassânio conseguir um empréstimo. Antônio acaba por apresentar o amigo a Shylock, um agiota da época, que poderia dispor da quantia. Entretanto, Shylock é semita, enquanto que Bassânio e Antônio são antissemitas, o que torna a negociação complexa e calorosa, ao fim acabam por estabelecer um acordo fora o convencional: o não pagamento do empréstimo condicionaria a Shylock o direito receber uma libra da carne de Antônio como pagamento.
Com o dinheiro em mãos Bassânio parte rumo a Belmonte, onde desvenda o enigma, escolhendo o baú correto e, por conseguinte, consegue a permissão para casar-se com Pórcia. Tudo parece caminhar bem, até a notícia de que os navios de Antônio perderam-se em alto mar, o que o impossibilitaria de quitar a divida, ambos partem para Veneza imediatamente, com dinheiro emprestado por Pórcia para pagar Shylock e salvar a vida de Antônio.
Shylock fica ainda mais determinado à vingança depois que sua filha abandona o lar e se converte ao cristianismo para se casar-se, levando consigo uma grande quantidade do dinheiro e um anel de turquesa, presente que Shylock havia ganhado da falecida esposa. Motivado a vingar-se dos cristãos o agiota consegue que Antônio seja preso e conduzido ao tribunal.
No tribunal, Bassânio oferece a Shylock o dobro da quantia que havia emprestado, mas o judeu insiste no cumprimento do contrato. Quando tudo parece perdido, surge um jovem dizendo ser “doutor em direito”. Esse jovem, na verdade, é Pórcia disfarçada. Ela clama inicialmente por misericórdia a Shylock, mas ele não cede. Em seguida, aponta uma particularidade do contrato: haviam acordado por retirar uma libra da carne de Antônio, mas nada foi dito quanto à retirada de sangue. Assim, se Shylock derramasse uma gota sequer do sangue de Antônio, pelas leis de Veneza deveria ter suas terras e bens confiscados. Diante disso, Shylock aceita sua derrota e a quantidade em dinheiro oferecida por Antônio. Entretanto, Pórcia ainda argumenta que ele não poderia mais aceitar depois de já haver recusado, utiliza-se de uma manobra jurídica e acaba por conseguir passar metade de todos os bens de Shylock a Antônio.
Com o passar do tempo, estabeleceu-se uma busca por um modelo democrático de contrato. Atualmente, indaga-se se o conceito jurídico de contrato que temos reflete as diretrizes do Estado Democrático de Direito e caso não reflita, deverá a doutrina caminhar para construí-lo.
O contrato no Direito Romano Clássico (NAVES, 2007) era dotado de rigor formalista. Ele não era visto como meio regulador para qualquer operação econômica. Para cada operação havia uma fórmula que deveria ser seguida para que essa operação tivesse a proteção estatal. O mero acordo de vontades não era suficiente para criar as obrigações.
O Direito Medieval (ROPPO, 2009) sofreu forte influência do Direito Canônico, Romano e Germânico costumeiro e assim apresentava parte do formalismo do Direito Romano. Com o crescimento da economia mercantil esse formalismo contratual passou a ser um entrave para as contratações, que pretendiam cada vez mais rápidas. Tornou-se, assim, comum, no instrumento contratual, constar que as fórmulas foram cumpridas, mesmo que, na prática, não fossem realizadas. Além disso, era comum, ao se celebrar um contrato, fazer um juramento com motivos religiosos para dar força àquele ato.
O contrato, tal qual o entendemos atualmente, é fruto do jus naturalismo e do nascimento do capitalismo. Nos períodos anteriores o indivíduo era determinado pelo grupo em que estava inserido e pela função que exercia dentro deste grupo, com o nascimento do capitalismo, o indivíduo passa a ser determinado por sua vontade autônoma, sendo, o contrato, o meio mais utilizado para fazer valer essa vontade. (RODRIGUES, Ricardo Araújo de Deus, 2009).
Ressalte-se, por oportuno, que com atual valoração dos direitos humanos e constitucionalização dos códigos os contratos devem respeitar a dignidade da pessoa humana, sendo práticas como a escravidão por dívida, lesão a integridade física e clausulas do gênero, vedadas no ordenamento jurídico. Desta feita, apesar da extrema relevância da peça de Shakespeare, tais condições jamais seriam legalmente constatadas atualmente.
Entretanto, a reflexão filosófica acerca das polêmicas temáticas que permeiam o enredo da trama refletem uma louvável visão de mundo, Shakespeare a quase meio século atrás sugeriu, de maneira suave, através de uma comédia, discussões que então em pauta até hoje.
“O mercador de Veneza” é uma leitura interessante a todos aqueles que pretendem refletir a cerca da evolução dos contratos, perfeitamente indicada perante uma formação jurídica mais humanizada, embasada na reflexão de temáticas como o antissemitismo, a relação entre lei, justiça e equidade e a relevância do “ser” perante o “ter”. A linguagem Shakespeariana é rebuscada, ao mesmo tempo poética e envolvente, a dramatização de cada frase torna a leitura empolgante e o passar das páginas penoso, uma leitura ácida, inteligente, com um humor refinado e uma temática atemporal. Shakespeare é o mestre em resumir as mazelas do ser humano em grandes questionamentos e reflexões, sempre com uma sagacidade espetacular.