Porcelana Invisível

Porcelana Invisível Fernando Paixão




Resenhas - Porcelana Invisível


2 encontrados | exibindo 1 a 2


Maitan 18/02/2018

Poemas sem pontas severas
Para aqueles que procuram prosa em poesia – me pergunto por que existem essas pessoas, teria sido culpa dos Pequenos poemas em prosa de Baudelaire ou por que simplesmente não há leitores de poesia? –, Fernando Paixão é uma boa pedida. O poeta que nasceu em Portugal e migrou ainda na infância para o Brasil (e, portanto, muito mais brasileiro que português) não só trabalha com a tessitura da prosa em seus poemas, como essa parece ser a forma última prescrita por sua poética.

Aliás, encontrar prosa na poesia talvez não seja assim tão difícil hoje em dia. A facilidade de se publicar um livro hoje é tamanha que o difícil agora talvez seja achar poesia em poesia, já que tantos nomes jovens se multiplicam com a tarefa saborosa de escrever um pequeno e singelo trecho do cotidiano e mutilá-lo com o linebreak do Word. Mas não vamos falar deles aqui.

Fernando Paixão, a despeito desse cenário distópico para a arte poética, é um autor que, por sua obsessão pela forma – e pela maneira como experiencia a escrita poética –, eleva o subgênero à sofisticação. Porcelana invisível é seu mais recente livro, lançado em 2015 na bela coleção “Poesia contemporânea” da falecida Cosac Naify. Além do livro Poeira, vencedor do prêmio APCA de 2001, não tenho nenhum outro contato com o autor, nem mesmo com sua Arte da pequena reflexão, “em que discute os limites e possibilidades do poema em prosa contemporâneo”.

Fernando Paixão não só apazigua os efeitos agudos da forma poética, como também os nega (metro, rimas, aliterações, assonâncias). E essa opção fica clara em seu “Poema como lição”, associando a postura com a maturidade poética:

Poema como lição

Aos vinte anos o jovem poeta acreditava
ter encontrado a imagem perfeita
quando escreveu entusiasmado:

“A seta de um pássaro
não tem extremos
só repousos”.

Passado o tempo aqueles versos
mais se parecem a um triângulo
de pontas severas.
Algo do barro lhes falta.

Em verdade a seta dos pássaros
curva-se ao apelo
das flores e das aves.

O poeta busca esse “algo do barro” que antes lhe faltava, na tentativa de tornar o poema mais chão, relacionando talvez a forma imperfeita do olhar e da recepção das coisas com a forma do poema, tirar do poema seu estatuto elevado e entregá-lo ao movimento arritmado das coisas naturais em suas riquezas mínimas e silenciosas. Para tanto, o poeta também faz o alerta já na terceira parte do livro:

Não lê

QUEM
não vê

O QUE
não vê

Durante a leitura, senti, para além da alma amante da introspecção, da incompreensão, de um sujeito poético que dá mais voz a seus silêncios que a seus discursos, a necessidade de acalmar os ânimos para permitir a contemplação dos fenômenos que, de tão corriqueiros, acabam passando despercebidos diante das obrigações diárias. É por isso que o autor insiste tanto em imagens como “o amanhecer”, “o entardecer” e “a noite”, “as cores” e “as formas das pedras”, “das árvores” e “dos animais”.
É preciso realmente se desapegar da ideia de grandiosidade do poema e de seus insights singulares, ainda que projetados sobre o cotidiano, para conseguir fruir sem chateação o que, se o leitor não se desarmar antes de abrir o livro, poderá ser entendido como uma meditação sobre as coisas singelas, beirando o enfadonho ou a monotonia. É possível, inclusive, ler como num álbum de fotos, pequenos recortes, frames, fotografias de formas suaves, geométricas, lineares ou curvas, e reconhecer a densidade de um quadro de natureza morta refletido.

Notícia de inverno

As frutas refletidas no vidro ganham escamas
porque assim o vento frio ordena às coisas
que sejam outras e um tanto misturadas

a se ocuparem de uma terceira presença
no florescer de um dia novo repetido em
frio e chuva mas sempre novo para que

as frutas amadureçam secretamente
avancem ao destino de outros dias
ainda que o vidro seja o mesmo

[...]

Os recursos poéticos são tão leves, mas tão leves, que sobra mais o prosaico, e daí então sobra muito pouco. Insisto em procurar o “enigma do mundo” contido no olhar do poeta (como disse Alfredo Bosi na orelha do livro): é uma leitura do apaziguamento, daquele que possuí talvez uma única certeza socrática, a de que não se sabe de nada ou de que, de tudo, pouco se há de saber. Ao mesmo tempo, da tristeza acompanhada pela lucidez que essa aceitação provoca.

Condições atmosféricas

O clima permanece triste
no subúrbio.
Os animais humanizam os cartazes
de propaganda.
É de metal a passagem dos meses.

Pouco sabemos
do tempo vindouro.
As névoas
movimentam-se entre guindastes.

Tão indelicada
A chuva
Fora de hora...

O que me chamou mais atenção, no fim das contas, foi o jeito sensível com que o poeta articula o jogo de luz e sombra dentre seus poemas, uma representação do olhar que ora se perde no horizonte, ora se fixa no que há de mais abstrato nas coisas concretas. Finalizo esse olhar sobre o livro com aquele que considero seu melhor poema, mais afim da poesia que da prosa, sem conseguir entender, ainda, por que tanto se busca subverter em prosa a poesia.

A luz e a luva

Língua oblíqua
ao rés da madeira
avança o veludo
da hora cinza.

Invade a sombra
em visita vespertina
corre sobre a mesa
qual pele negativa

não sabemos nada
nunca saberemos
a intimidade da luz
vencida. Sombra.

Tão severa e mínima
desce a lâmina
reta e convicta:
faca na tarde fria.
comentários(0)comente



Rafa Ghacham 24/02/2017

Amorzinho
UAU, me surpreendeu bastante - positivamente, é claro - a leitura desse livro. Havia tempo que não me empolgava em um livro de poesias, mas esse me fez querer entrar no pensamento/sentimento/entendimento do poeta. Indico bastante, alta qualidade literária e livro lindo como todos da Cosac!
comentários(0)comente



2 encontrados | exibindo 1 a 2


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR