JuliaPoison 04/10/2014
Somos todos discípulos da madrugada
"Tinha religião, mas não tinha espiritualidade. Duas coisas distintas. A religião é a antessala da espiritualidade. É o agrupamento humano onde podemos ritualizar o que cremos. A religião é o território da oração, do estudo, da convivência, da partilha que nos faz solidários. Mas a espiritualidade é que reveste de sentido tudo isso. Ela é o fruto que nasce naturalmente de uma religião vivida honestamente. Volto a dizer. Não basta ter a lei cingida nos rins. É preciso tê-la inscrita no coração."
Seguir a Deus é uma luta diária para, nos caminhos do amor Dele, se tornar um ser humano melhor. É entender a lei de Deus, não como uma regra a ser seguida dentro de uma religião, mas como algo que Ele estabeleceu para nos proteger e nos orientar porque, acima de tudo, Deus é amor. Em seu livro O discípulo da Madrugada, Pe. Fábio de Melo mostra essa visão de Deus. O Deus que é mostrado no antigo testamento, que é por vezes vingativo e cruel, é apenas o retrato do homem. Na Bíblia, ele transmite a mensagem de Deus com ruídos, que são os próprios defeitos e imperfeições humanos, os quais o homem associa à figura de Deus. Nesse livro, o protagonista é amigo de Jesus e, ao lado dele, descobre uma forma totalmente nova de ver Deus.
Sempre gostei dos evangelhos da Bíblia e da forma como Jesus prega o amor ao próximo, a tolerância e a compreensão para com o outro. No livro O discípulo da Madrugada, a proposta de um Deus amoroso, embora não seja nova para quem leu tais livros da Bíblia, é muito bem apresentada; e o padre realiza nossa travessia para o novo testamento. O texto evidencia certos pontos importantes na busca por Deus. Ressalto, sobretudo, a ideia de que obedecer a Deus é um direito nosso e a de que só quem conquistou a liberdade interior pode obedecer verdadeiramente.
O personagem principal, que narra a história em primeira pessoa, é um judeu que conhece profundamente as escrituras do antigo testamento e se vê muito confortável em sua posição de religioso exemplar, isso até conhecer Jesus. O filho de Deus mostra a ele a diferença entre religião e espiritualidade e o ensina a ter uma visão mais positiva dos que estão à sua volta, sem apontar para os pecados do outro, sem julgamentos.
O livro mostra um lado mais humano da religião. É o que mais gostei, o fato de o personagem principal, depois dos ensinamentos de Jesus, começar a lutar diariamente para ser mais compassivo, mais tolerante e superar seus preconceitos. Essa visão se aproxima da minha luta como ativista pelos direitos humanos: é preciso ir contra o senso comum e enxergar os preconceitos que estão entranhados em toda uma cultura e sociedade, tão profundamente enraizados que parece natural pensar desse modo. E então nós podemos desafiar essas noções porque o mundo não precisa ser sempre assim.
"Só assim modificamos o mundo. Quando transgredimos a mesmice que ontem nos pareceu satisfatória."
"É natural que a gente obedeça ao movimento que nos encaminha ao convencional. Gera menos conflito. Mas caminhos já desvendados nem sempre são os mais seguros de trilhar. Eles nos ludibriam ao nos fazer pensar que não nos oferecerão percalços."
Para quem é cristão, o livro pode fazer repensar a vida. Não é difícil se identificar com o personagem e ver em si os erros que ele comete na busca por Deus. Apesar de a construção da história e das personagens não serem pontos fortes do livro, as ideias que o padre apresenta podem nos transformar e nos fazer refletir.
Ao longo do livro, a história do protagonista com Jesus é utilizada como suporte para as ideias do padre. Esse formato, embora necessário para atingir o grande público, mantém a história no terreno da superficialidade. Senti falta, por exemplo, de um pouco mais de análise do antigo testamento, mais trechos como aquele em que o Padre explica a passagem da Bíblia em que Deus supostamente pede a Abraão que sacrifique seu filho Isaque. Acho que esse tipo de reinterpretação poderia estar mais presente no livro. Talvez, por ser um livro destinado a um público maior, esse tipo de argumentação não caiba, mas senti falta.
Os trechos em que o protagonista assiste a crucificação de Jesus e o momento em que ele conhece Maria Madalena são muito interessantes no livro, quase como uma oportunidade para o leitor de estar ao lado de Jesus, em seu tempo, e ver diante de seus olhos a história do evangelho.
"Ele sentiu sede e eu não o socorri. Sentiu frio e eu não lhe ofereci o manto. Sentiu vergonha e eu não o protegi. Fiz o que todo mundo fez. Fiquei abrigado sobre a proteção hipócrita do bom senso."
Não sei se acredito na mensagem do Padre. Não posso dizer exatamente se creio no Deus do cristianismo ou não. Mas a mensagem continua e os ideais que o livro transmite valem a pena serem pensados e discutidos. E quem sabe, ao ler esse livro, cada um possa desvendar a seu próprio modo o que significa o amor de Deus.