Vê 02/06/2014Às vezes, encontramos uma leitura que, a princípio, nunca nos passaria pela cabeça dar uma chance sequer, mas que, após virada a última página, é inevitável agradecer pela mudança de ideia e se sentir extremamente realizado por ter aproveitado essa chance.
No começo, confesso que A Extraordinária Viagem do Faquir que Ficou Preso em um Armário IKEA (vamos estreitar isso, chamarei daqui em diante de "A Viagem do Faquir") não tinha nada para chamar a minha atenção, com a exceção de um título extremamente longo e, no mínimo, curioso. Quando fui presenteada pela editora Record, imediatamente sabia que minha chance de provar que estava errada havia chegado. E eu jamais me arrependeria de ter passado poucas horas na companhia do peculiar faquir Ajatashatru.
Com uma narrativa simples e muito, muito divertida, somos apresentados a "acha já a tua vaca" e logo fica claro que nesse livro, nem mesmo o autor leva o próprio protagonista a sério. Não demora muito para descobrirmos o por quê. O faquir em questão nada mais é do que um vigarista.
Morador de uma pequena região da Índia, "achata o tutu" conseguiu convencer os moradores de sua vila que ele era um faquir de verdade, daqueles que atravessam objetos afiados pela língua e dormem em camas de pregos. Por isso, ele precisa ir até a França para adquirir o mais novo modelo de cama de pregos da loja IKEA e, assim, dormir de forma confortável e satisfatória, dado o faquir de respeito que ele é.
O problema é que "achata o tutu" é uma fraude. O que ele faz são truques de ilusão e a origem simplória de seus vizinhos deixa que acreditem que ele nada mais é do que alguém fenomenal. Sendo assim, ele voa até a França aplicando um golpe atrás do outro, desde a vestimenta fina até na hora de pagar a corrida de táxi.
Mas Ajatashatru (caramba, como é difícil até na hora de escrever!) não é assim porque quer. Enquanto aventura-se na imensa loja IKEA, aguardando pela entrega da tão desejada cama de pregos, ele tem a oportunidade de experimentar uma breve reflexão sobre a vida que tem levado até então. E quando ele, acidentalmente, vai parar dentro de um armário da loja que está sendo despachado para a Inglaterra, "achata o tutu" tem certeza de que há muito mais no mundo do que vigaristas como ele e pessoas boas e simples como as que moram na sua vila lá na Índia.
O mundo que ele pensava existir fora dos limites de sua terra é muito mais complicado e repleto de todos os tipos de pessoas que ele sequer imaginava existir. Isso provoca no faquir um enorme desejo de mudança e, pela primeira vez em sua longa vida, ele começa a surpreender-se com as pessoas, que imaginava serem todas vigaristas, como ele.
A Viagem do Faquir foi uma surpresa, assim como presente no título longo, extraordinária. Além de uma leitura fácil (com a exceção dos nomes que eu raramente consegui pronunciar, por isso vocês viram tantos "achata o tutu" na resenha) e muito divertida, o autor soube pesar de forma magnífica o lado emocionante e duro dos imigrantes ilegais. Embora o faquir, a princípio, tenha vindo legalmente para a França, suas aventuras o fizeram conviver com pessoas que lutavam todos os dias por uma vida melhor nos países europeus na clandestinidade.
Este outro lado, o lado sofrido, provocou uma mudança gradual, mas intensa no protagonista que, para mim, foi o ponto mais importante e bonito do livro. O autor conseguiu demonstrar não só ao faquir, como aos leitores que o mundo não é como achamos; existe muita coisa além das nossas zonas de conforto. Pessoas honestas, simples e sonhadoras em busca de um futuro melhor para si mesmas e suas famílias. Gente que convive com a guerra civil em seus países de origem e que só estão à procura de uma oportunidade para viver dignamente.
Ser imigrante, quanto mais ilegal, não é nada fácil. E, uma vez que "achata o tutu" se vê nessa mesma situação, conhecendo um pouco mais dessas pessoas batalhadoras, isso o faz rever tudo na própria vida. Desde o seu comportamento desonesto até o nascimento de um sentimento forte de querer ajudar ao próximo e não mais almejar a vantagem sobre os outros. É uma mudança maravilhosa, que o autor soube construir ao longo do livro de forma gradativa e sólida.
Eu me surpreendi, me diverti e me emocionei com essa leitura inesperada e incrível. A Viagem do Faquir é um livro excepcional e surpreendente. Devorado em poucas horas e garantidor de boas risadas, uma grande aventura o espera nessas páginas, além de uma emocionante evolução do nosso protagonista. São aventuras inéditas que o farão viajar por vários países e torcer por todos os personagens que se encontram aqui.
Uma nova perspectiva é oferecida diante do sofrimento de imigrantes ilegais e seu impacto em "achata o tutu" é inspirador. Prova de que uma boa dose de vida real pode mudar até a mais corrompida das pessoas. E podemos perceber que há todo um passado que influenciou na forma do faquir ver o mundo e as pessoas nele. Simplesmente genial!
A edição da Record está uma delícia de ler, com capítulos curtos e boa revisão. Um único ponto que me deixou um pouco desconfortável foi a qualidade da impressão, bem clarinha. Não sei se era essa a intenção, mas ao invés de preto, as letras ficaram cinzas, parecendo falhadas. Isso no livro todo. Não é algo que atrapalhou muito a leitura, mas achei que deveria ser um pouco mais forte. No mais, está tudo muito bom e é uma leitura mais do que indicada!
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