Henrique 10/05/2014
Se eu acreditasse em demônios, Iluminadas estaria entre os livros mais satânicos que li em minha vida, e não foram poucos. Se eu acreditasse no diabo, Lauren Beukes seria seu sobrenome.
ANÁLISE SEM SPOILERS
Acredito que se queremos nos referir a algo irreal, surreal, podemos recorrer a diversos conceitos, dentre eles, o de "perfeição". Perfeição é uma invenção inalcançável quando estamos falando da vida real, no mundo real. No entanto, Lauren Beukes chegou perigosamente perto do que é pleno.
Enquanto escrevo esta resenha, preciso dominar o impulso de impregná-la de adjetivos. Um pouco constrangido, confesso que esse livro me fez puxar os cabelos meia dúzia de vezes e estagnar a leitura o dobro de vezes, receoso de ler o que viria em seguida ou por estar estupefato com o que essa mulher criou: um livro, acima de tudo, inteligente, com uma complexidade diabólica e psicologicamente destrutivo, perturbador e (naturalmente) divertida. Uma das melhores e mais inteligentes leituras da minha vida. Mereceu o prêmio de melhor livro do ano em seu gênero, recebido em 2013.
A imagem abaixo revela o trabalho, a dedicação e a mente por trás de The Shining Girls (título original) que, dentre outros aspectos, é um livro adulto, repleto de questões da vida adulta, da vida real, nuas e cruas, mesmo com o pano de fundo sobrenatural.
(imagem no blog, não consegui pôr o link aqui)
[http://pilulasliterarias.blogspot.com.br/2014/04/iluminadas-de-lauren-beukes.html]
Uma Importante Ressalva
Alguns leitores vão encontrar dificuldades em situar-se na história, especificamente com relação ao elemento fantástico que permeia toda a história: os saltos no tempo. Eu desejo, com sincera honestidade, que você não seja aquele gênero de leitor que desiste diante do primeiro obstáculo. Que transformam o "eu não estou conseguindo entender isso" em "que trapalhada é essa?". Esteja disposto a vivenciar uma experiência em literatura de fantasia diferente do status quo. Dê um passo mais adiante com a sua mente e seja bem vindo ao mundo dos livros que são como os sete diabos por sua trama bem arquitetada. E, pelo amor de Tolkien, voltem para me dizer se você também foram impulsionados a quase arrancar os cabelos!
Sobre a Obra
Não gosto de incluir sinopses em minhas resenhas. Ultimamente elas tem transformado bons livros em chavões ou 'lugares-comuns' por ressaltarem aspectos que não são relevantes e retirarem a originalidade presente na obra. Assim, na maioria dos casos, faço minha própria adaptação.
1931. Década em que o mundo enfrentou a terrível Grande Depressão.
Harper, um vagabundo doentio, tem uma chave que abre as portas de um casarão abandonado. A 'Casa' que o leva à outras épocas, outros tempos. Ele ouve a Casa, ela o chama.
Harper tem um missão: assassinar brutalmente todas as garotas iluminadas. Sua missão e seu prazer. Ele é bom no que faz. As coisas, no entanto, começam a desandar quando, ao avançar para o ano 1989, Kirby, uma das garotas que ele deveria matar, sobrevive e começa a caçá-lo.*
*Estes elementos compõem a premissa da obra.
Aspectos da Obra a Serem Considerados
+ TRAMA
"Só existe uma certa quantidade de enredos no mundo. É como eles são desenvolvidos que os torna interessantes". - Lauren Beukes, lluminadas
Interessante não é a melhor palavra para transmitir a excelência que essa mulher conseguiu atribuir à sua história, pois sua trama não apenas 'prende' a atenção, como também a 'subjuga', fere, lacera. Quando a Casa entra em cena, sua mente fica presa dentro dela, sedenta de curiosidade, sufocando de tensão. Sair da Casa significa presenciar a morte de garotas pelas mãos de um homem detestável e clinicamente cruel. Tudo se intensifica quando, antes de vê-las morrer, você as conhece, caminha por sua mente, segue seus passos, sabe de seus sonhos, planos, segredos e anseios. É um convite para toda sorte de emoções e sentimentos e o resultado dessa mistura é uma tortura psicológica que beira a histeria.
Lauren Beukes coloca diante de nós pessoas reais, garotas inegavelmente reais, que estão no rastro de um serial killer impiedoso, que sente prazer no ato de matar, que se excita em ferir. Garotas que não fazem ideia de que um andarilho do tempo está caminhando em suas direções.
Os capítulos (e é aqui que reside grande parte da complexidade da trama) são distribuídos sob o ponto vista de alguns personagens, na maioria dos casos envolvendo Harper ou uma de suas vítimas, dentre as quais, a mais abordada é, naturalmente, Kirby. Há diversas tramas secundárias, repletas de ligações entre si e que giram em torno do círculo de assassinatos, que precisa ser fechado. Esses capítulos se passam em diversos momentos do tempo entre 1931 e 1993, repleto de referências históricas e culturais que atribuem uma grande carga de riqueza ao trabalho da Lauren.
Especificamente os capítulos com a Kirby são cheios dos melhores diálogos da trama.
+ ESCRITA
Um elemento que confere a consistência creep à história são seus diálogos mordazes, inteligentes e mórbidos. A escrita de Lauren evoca realidade, é direta, cheia de analogias que esbanjam sagacidade, ironia. Laurem também está ocupada em nos inserir no contexto de cada um de seus personagens, afinal de contas, uma negra que viveu na década de 40 não lida com a mesma realidade que se aplica aos anos 90.
+ ASPECTOS QUE CONSIDERO IMPORTANTES:
--O Sobrenatural--
Iluminadas é um pouco thriller policial, um toque de drama e um escancarado teor sobrenatural, que confere outro aspecto, o de um thriller psicológico.
A Casa é o que nos possibilita transitar entre a vida de pessoas que viveram em diferentes momentos da nossa história. Sua influencia sobre Harper e os eventos que giram em torno dela nos faz sentir a autoridade da natureza do mal, sua mão invisível brincando com vidas dentro do tempo, mudando suas vidas, desenhando suas mortes.
A ideia de um lugar, aparentemente inofensivo, uma casa antiga e caindo aos pedaços, que exerce influencias malignas sobre um indivíduo e que o permite caminhar livremente entre as épocas quando bem entender é perturbadora. Esse elemento fantástico é guiado por Lauren com uma notável maestria. O homem que assassinou uma garota na época da Grande Depressão fez também uma vítima nas vésperas da virada do século, mais de meio século depois. Um psicopata caminhando pelo tempo nas mãos de Lauren é a última pessoa com quem você gostaria de esbarrar um dia.
--Policial--
O peso e a importância do gênero policial ou investigativo está em muitas partes do livro. Temos assassinatos que, apesar de serem cometidos em diferentes momentos do tempo, possuem alguma ligação. Apesar da intervenção da polícia nesses crimes, como não conseguem solucioná-los, ou eles encontram a quem culpar (geralmente gangues) ou arquivam o caso. Logo, teremos personagens que, por estarem envolvidos ou apenas interessados e intrigados com os casos, irão dar uma de detetives. Esse aspecto é bastante animador para mim, pois faz referência ao desejo por justiça e a esperança que precede seu cumprimento.
A quantidade de pesquisas e leituras que a autora realizou para fazer Iluminadas se o que é chega a ser assustadoras. Além disso, o número de apoio que ela recebeu, conselhos, sugestões, dicas, correções e as viagens que ela fez para conseguir informações para sua história só reforçam meu apreço por essa maravilha da ficção.
+ Iluminadas e Sua Aplicação à Vida Real
À parte o seu poder devastador pela tensão e crueza, Iluminadas é um livro sobre a natureza humana. Sobre como somos pequenos e estamos sujeitos à mudanças repentinas e inesperadas. Sobre como a perda pode significar uma vida inteira de solidão, de dor ou de superação, resiliência, aceitação e resignação. Sobre os clichês da humanidade, suas guerras, seus dilemas, seus vícios, seus amores e terrores. Sobre continuar vivendo mesmo quando a morte soprou seu hálito de sangue e excrementos em sua face.
É, também, um retrato da mente cruel, sádica e selvagem que nos recorda do quanto podemos ser perversos. Acredito que todos temos uma versão potencialmente minimizada e, ainda assim, perigosa e destrutiva do "Harper" dentro de nós e que, por vezes, ela se manifesta por meio de palavras, de comentários pejorativos na rede, do desejo insano de agredir alguém, de ver sangue verter. Nossa mente é nossa casa, precisamos mantê-la sob nosso comando.
Por fim...
Gostaria de convencer o mundo a ler esse livro, mas é querer demais. No entanto, espero que tenha feito um ótimo trabalho em convencer você. Penso que você merece ler essa história, todos merecem ler essa história.
Eu estava tentando considerar os aspectos negativos, mas eles devem haver sido tão irrelevantes que me resta apenas citar o ponto facultativo, que é a descrição. Alguns leitores podem achar alguns momentos descritivos acima da conta, o que não torna um livro ruim, já que há outros aspectos que o torna tolerável. Gostei das descrições e as considerei relevantes para contextualizar e familiarizar com o que deveria.
Espero que leia, goste e recomende Iluminadas.
Por Henrique Magalhães
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