Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo David Foster Wallace




Resenhas - Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio Que Longe de Tudo


37 encontrados | exibindo 31 a 37
1 | 2 | 3


Paulo Sousa 25/03/2019

FLDFDJEMQLDT, de David Foster Wallace
Título lido: Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo - Ensaios
Título original: Getting Away from Already Pretty Much Being Being Away from It All
Autor: David Foster Wallace (EUA)
Tradução: Daniel Galera e Daniel Pelizzari
Editora: Companhia das Letras
Anos de lançamento: 1993, 1996, 1999, 2004, 2005, 2006
Ano desta edição: 2012
Páginas: 312
Classificação: 3.5/5
__________________________________________
"O barato existencial, portanto, é conquistar alguma espécie de fuga do confinamento e dos estímulos -- silêncios, paisagens rústicas que não se mexem, um voltar-se para dentro: ficar longe" (Posição no Kindle 799/15%).
.
Incauto como sou, faz um bom par de meses desde que me afoguei na prosa caudalosa de "Graça Infinita", o vigoroso e sinestésico romance do escritor David Foster Wallace. Na ocasião, estava num tão grande êxtase em ler aquele gigantesco livro que sequer me preparei convenientemente para tamanha empreitada: vencer as quase 1.200 páginas em fonte pequena mais as inúmeras notas de rodapé que compõe o volume. Saí literalmente nocauteado na página 80 em busca de textos mais acessíveis para um leitor desastrado como eu sou...
.
Apesar de postergada a façanha de vencer Graça Infinita, ainda assim sempre quis ler algo do DFW (explicando, não é que Graça Infinita seja ruim, muito pelo contrário, a história, apesar de intrincada, é muito boa, todas aquelas termologias sensitivas e detalhadas em prol do combate à dispensável e insessante busca pelo entretenimento tem o seu valor, sem falar no frisson de poder sair ileso de tamanho calhamaço...).
.
Logo, busquei algo mais maleável dele, mais apropriado para leitores errantes como o eu, e acabei por topar com a coletânea de ensaios de DFW, o excelente "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo", livro que considero muito bom para iniciar-se na prosa do escritor.
.
O livro reúne seis ensaios de Foster, publicados entre 1993 e 2006 em revistas e jornais, e que são impressões bem interessantes do escritor sobre variados temas, onde pude perceber, buscam uma explicação pela gana ao exagerado anseio pelo entretenimento e a uma espécie de hedonismo. DFW, então exercendo a função de jornalista, descreve a própria experiência quando visitou uma feira agrícola no meio-oeste americano, dessas onde animais, máquinas agrícolas, exposições e simpósios são reunidos em vários dias de evento; em outro momento, num longo ensaio, faz um interessantíssimo relato de tudo que viu e viveu durante um cruzeiro de luxo pelo Caribe, onde o autor vai nos inserindo ao dia-a-dia da embarcação; já num terceiro texto, faz uma análise bem acurada sobre a polêmica envolta ao ato de escaldar lagostas para consumo, sobre como a ciência busca entender que o animal marítimo reage aos efeitos da água escaldante. Temas tão diversos, mas muito bem escritos!
.
Alguns desses ensaios, embora tragam muitas expressões e frases que me fizeram rir, compreendem, na verdade, temas complexos e sérios, disfarçados pelo mar de detalhismos que o escritor adota em seus textos. Para DFW, não há muito sentido em passar dias assistindo a mostras de animais, a embriagar-se com gordurosos sanduíches e se esgueirando por brinquedos de parques de diversões que causam verdadeiro pavor a Wallace, a participar nas reiteradas rodas de diversão num navio, na bestialidade que há no deleite de milhares de americanos que pagam caro para ter toalhas limpas a todo momento e comida desregrada. Sem falar em sua análise crítica no, ao seu ver, ato vil de jogar lagostas vivas num caldeirão de água fervente, Foster faz muito mais que trazer dados e estatísticas, quando traz à tona temáticas que, com o costume, deixaram de ser importantes.
.
Logo, em cada ensaio, é possível perceber as nuances do escritor, prematuramente morto aos 46 anos, mas que para quem os detalhes eram de extrema importância num mundo onde é tão comum perdermos a capacidade de se admirar com as coisas mais singelas. Vemos um DFW pitoresco, analítico, versado em tênis e Kafka, um ativista preocupado com a incolumidade das lagostas marinhas, fadadas a serem engolfadas por panelas com água quente. FLDFDJEMQLDT é daqueles livros incomuns na forma como foram escritos, mas que certamente conseguem levar o leitor às voltas com a singularidade dos pequenos prazeres. Vale!
comentários(0)comente



Oz 15/05/2017

Uma conversa com seu nunca conhecido e velho amigo David F. Wallace
Antes de tudo, esqueça qualquer preconceito sobre ler ensaios. O que você terá ao ler esse livro é a experiência de escutar alguns depoimentos extremamente sinceros e cativantes de um amigo que você conhece há tempos, tamanha é a fluidez do texto de Wallace.

Sobre o livro, trata-se de uma coletânea de 6 ensaios. O primeiro é a experiência de DFW ao ir em uma feira agropecuária no interior dos EUA. Logo de cara, temos um relato honesto e bem engraçado sobre o que esse peculiar cidadão vivenciou na feira. Desde se empanturrar de doces ao se passar por um repórter de uma revista de culinária até comentar sobre seu medo de experiências quase-morte em brinquedos de parques de diversão. O segundo ensaio relata uma viagem de Wallace em um cruzeiro de luxo pelo caribe e suas descrições e comentários sobre as pessoas do cruzeiro, as coisas com que se espantava (como o funcionamento da privada de seu banheiro!), até os eventos mais atípicos, como a derrota que sofreu no xadrez para uma menina infeliz de 9 anos.

Esses dois primeiros ensaios são no mínimo geniais, engraçados e, como disse no início da resenha, cativantes. A minha expectativa ao ler o terceiro ensaio, que versa sobre a comédia nos textos de Kafka, era um pouco mais baixa, pois talvez se tratasse de um texto mais acadêmico. E pimba, eu estava errado. Esse é um texto bem mais curto, mas tão bom quanto os outros, com uma levantamento de questões sobre diversão e entretenimento que ele abordaria depois em Graça Infinita.

O quarto ensaio relata uma visita que DFW fez a uma feira de Lagostas no Maine. O centro do artigo é levantar o questionamento sobre o quão moral é esquentar e matar uma lagosta para se alimentar dela. Mas não se iluda achando que se trata de um texto enfadonho e meramente filosófico. Novamente, temos um ensaio no qual Wallace parece conversar com a gente, mesmo abordando um tema mais denso.

O quinto texto é um belo discurso de paraninfo de Wallace. Por fim, o último ensaio nos traz toda a paixão de Wallace por tênis (tema também central em Graça Infinita), particularmente por Roger Federer. Embora esse ensaio seja um pouco mais específico que os demais, ainda assim eu acredito que mesmo um leigo em tênis vá gostar de ler.

No geral, o que se pode dizer sobre essa coletânea é que ela mostra a genialidade de um escritor que consegue abordar uma miríade de temas e assuntos de uma forma suave, cativante, sincera e com seu humor peculiar. É como conversar com um velho amigo. Leia esse livro.

site: www.26letrasresenhas.wordpress.com
comentários(0)comente



Felipe Novaes 23/01/2017

David Foster Wallace consegue tornar informativo até a chatice de um artigo sobre tênis (com direito a descrições de jogadas e da indumentária dos jogadores).

Um dos méritos do último capítulo em particular, sobre esse tema, é que ele fala de maneira muito fluida sobre o que diabos faz um jogador afinal ser bom em remexer o corpo como se estivesse dançando tchatchatchá ao mesmo tempo em que golpeia bolas que chegam ao outro lado da quadra em menos de um segundo.

Tem algo a ver com uma habilidade cinestésica incomum, tanto fruto de alguma propensão já que se revela no início da vida quanto de treinamento intenso.

E isso me lembra meus tempos de futebol quase diários no colégio.

É engraçado descrever o que ocorre com jogadores que dependem de altos graus de reflexo. Eu era goleiro, jogava futsal, então reflexo era como a vassoura de um jogador de quadribol. Sem isso não dá nem pra entrar em quadra.

Do lado de fora as pessoas só vêem um goleiro defendendo o gol de bolas bem colocadas e chutes fortes, mas elas não sabem exatamente como isso se dá para a própria pessoa envolvida.

Um goleiro não vê a bola vindo super rápido e então pensa em se mover pro lado certo de maneira tão rápida quanto a bola. Da perspectiva de primeira pessoa é mais ou menos como se a bola parecesse ser mais lenta do que pareceria para os observadores.

Você não pensa, seu corpo simplesmente começa a se ajustar. Se houvesse tempo suficiente você apenas perceberia que seu corpo está fazendo algo sozinho que você não tem ideia do que é. Mas aí você começa a perceber que na verdade tudo isso é o início do movimento que vai te levar até a bola vindo a toda velocidade.

É um exemplo visceral e quase cotidiano de que a nossa racionalidade não importa muito nos momentos realmente rápidos da vida. Você simplesmente faz o que está treinado para fazer, mesmo que nunca tenha percebido que o modo como você conduz sua vida cotidiana, sua atitude mental em relação às coisas que acontecem ou como você leva os esportes, são sim um treinamento -- embora possa não envolver clubes, muito dinheiro e empresários.

E isso me leva diretamente ao conteúdo da maioria dos outros artigos de Wallace, principalmente o sobre água.

Wallace tem uma habilidade impressionante para mostrar percepções que talvez todos tenham, mas que estão tão debaixo dos nossos olhos que às vezes fica difícil ver:

(i) Vivemos num sistema engraçado ao ponto de cultivarmos hábitos degenerativos -- como o entretenimento que nos leva à desatenção permanente, entretenimento e humor como fuga do que realmente interessa --, mas esses hábitos são o combustível para o consumo, que sustenta o conforto superficial (mais entretenimento) e profundo (mais conforto, mais saúde etc).

É como uma máquina que produz jardins às custas de muita sujeira -- sujeira não criada naturalmente, mas em parte produzida justamente pra alimentar esse Uroboros, até que você não tem mais condições de saber como parar a máquina, de saber o que veio primeiro.

(ii) Estamos usando o humor para ficarmos mais burros e distraídos. É como ratos alimentados experimentalmente com cocaína, para correrem cada vez mais na rodinha da gaiola e esquecer do fato de que estão ali presos numa gaiola.

(iv) Cultivamos hábitos mentais (falando num sentido amplo aqui). Desconstruir esses hábitos é tão difícil quanto ser obeso e se engajar numa dieta. Mas é necessário. MUITO.

(v) LEIAM ESSE LIVRO
comentários(0)comente



Mari 14/05/2015

Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, “Bom dia, rapazes, como está a água?”. E os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, “Que diabos é água?”.

Se você está preocupado pensando que eu estou planejando me apresentar aqui como o peixe velho e sábio explicando o que é água, por favor não fique. Eu não sou o peixe velho e sábio. O ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, ubíquas e importantes são frequentemente as mais difíceis de se ver e discutir. Declarada como uma frase, é claro, isso é só um lugar-comum banal – mas o fato é que, nas trincheiras diárias da existência adulta, lugares-comuns banais podem ter importância de vida ou morte.


É claro que o principal requerimento de discursos de formatura como esse é que eu devo falar sobre o significado da sua educação de Ciências Humanas, tentar explicar por que o diploma que você acabou de receber tem algum valor humano real ao invés de apenas compensação material. Então vamos falar do maior clichê do gênero do discurso de formatura, que é que a educação de ciências humanas não tem o propósito de te encher de conhecimento, mas sim de ensiná-lo a pensar. Aqui vai outra historinha didática:

Tem dois caras sentados juntos num bar numa região remota do Alaska. Um dos caras é religioso, o outro é ateu, e os dois estão discutindo sobre a existência de Deus com a intensidade especial que vem depois da quarta cerveja. E o ateu diz: “Olha, não é como se eu não tivesse razões verdadeiras pra não acreditar em Deus. Não é como se eu nunca tivesse experimentado essa coisa toda de Deus e oração. Mês passado uma nevasca terrível me pegou longe do acampamento, eu tava completamente perdido, e não conseguia ver nada, e tava 25 graus negativos, então eu tentei: eu caí de joelhos na neve e gritei ‘Ó Deus, se existir um Deus, eu tô perdido nessa nevasca, e eu vou morrer se você não me ajudar.'” E agora, no bar, o cara religioso olha pro ateu confuso. “Bem, então você deve acreditar agora”, diz ele. “Afinal, aqui está você, vivo.” O ateu rola os olhos. “Não, cara, o que aconteceu é que dois esquimós por acaso apareceram por lá e me mostraram o caminho do acampamento.”

É fácil fazer uma análise literária dessa história: A mesma exata experiência pode significar duas coisas completamente diferentes para duas pessoas completamente diferentes, considerando os diferentes modelos de crença e as diferentes formas de construir significado de uma experiência. Porque nós valorizamos tolerância e diversidade de crença, não queremos na nossa análise literária afirmar que a interpretação de um cara é verdadeira e a interpretação do outro cara é falsa ou ruim. O que não tem problema, só que nós também acabamos nunca falando sobre de onde vêm esses modelos e crenças diferentes.

Quero dizer: de onde eles vêm dentro dos dois caras? É como se a orientação ao mundo mais básica de uma pessoa, e o significado de sua experiência, fossem de alguma forma simplesmente impressos nos genes, como altura ou tamanho do sapato – ou automaticamente absorvidos da cultura, como linguagem. Como se a forma em que construímos significado não fosse uma questão de escolha pessoal e intencional. Além disso, há toda a questão de arrogância. O cara não-religioso está completamente certo na sua rejeição da possibilidade de que os esquimós tiveram qualquer coisa a ver com sua oração e pedido de ajuda. Verdade, existem também muitas pessoas religiosas que parecem arrogantes e certas de suas próprias interpretações. Elas provavelmente são muito mais repulsivas do que os ateus, pelo menos para a maioria. Mas o problema do religioso dogmático é exatamente o mesmo do descrente da história: certeza cega, uma mente fechada que representa um aprisionamento tão completo que o prisioneiro nem sabe que está encarcerado.

O ponto aqui é que isso é uma parte do que me ensinar como pensar significa. Ser um pouco menos arrogante. Ter um pouco de consciência crítica sobre mim e minhas certezas. Porque uma grande porcentagem das coisas sobre as quais eu costumo automaticamente ter certeza é, na verdade, totalmente errada ou ilusória. Eu aprendi isso do jeito difícil, e eu aposto que vocês também vão.

Aqui vai um exemplo de algo completamente errado que eu costumo automaticamente ter certeza: tudo na minha experiência apóia minha crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, a pessoa mais real, vívida e importante que existe. Nós raramente falamos sobre esse tipo de egocentrismo natural e básico, porque ele é tão socialmente repulsivo, mas é basicamente o mesmo para todos nós, no fundo. É a nossa configuração padrão, impressa nos nossos circuitos desde o nascimento. Pense nisso: você nunca teve uma experiência da qual você não foi o centro absoluto. O mundo como nós o vemos está bem na sua frente, ou atrás de você, ou à sua esquerda ou à sua direita, na sua TV, no seu monitor, ou o que for. Os pensamentos e sentimentos de outras pessoas precisam ser comunicados pra você de alguma forma, mas os seus próprios são tão imediatos, urgentes, reais… você entendeu.

Mas por favor, não se preocupe pensando que eu estou me preparando pra pregar pra você sobre compaixão ou desprendimento ou as supostas “virtudes”. Isso não é uma questão de virtude, é uma questão de eu escolher fazer o trabalho de alterar ou me livrar da minha configuração padrão natural, que é ser profundamente e literalmente egocêntrico, e ver e interpretar tudo pela lente do eu. Pessoas que conseguem ajustar sua configuração padrão natural dessa forma são geralmente descritas como “bem ajustadas”, o que eu lhe sugiro que não é um termo acidental.

Como vocês devem saber, é extremamente difícil se manter alerta e atento, ao invés de se hipnotizar pelo monólogo constante dentro da sua próprio cabeça (pode estar acontecendo agora). Vinte anos depois da minha gradução, eu cheguei à conclusão de que o clichê sobre a educação de Humanas sobre te ensinar como pensar é na verdade uma simplificação de uma idéia muito mais profunda e séria: aprender como pensar significa como exercer controle sobre como e o que você pensa. Significa estar ciente e consciente o suficiente para escolher no que você presta atenção e escolher como você constrói significado de uma experiência. Porque se você não exercitar esse tipo de escolha na vida adulta, você está lascado.

Pense no velho clichê sobre a mente ser “um ótimo servo mas um terrível mestre.” Esse, como vários outros clichês, tão bobo e broxante na superfície, na verdade expressa uma grande e terrível verdade. Não é mera coincidência que adultos que se suicidam com armas de fogo quase sempre atiram na cabeça. Eles atiram no terrível mestre. E a verdade é que a maioria desses suicídas estão mortos muito antes de puxarem o gatilho. E eu sugiro que esse é o verdadeiro valor da educação de Humanas: como evitar viver sua confortável e próspera vida adulta morto, inconsciente, um escravo da sua cabeça e da sua configuração padrão natural de ser unicamente, completamente, imperialmente sozinho, dia após dia. Isso pode soar como hipérbole ou baboseira abstrata. Vamos deixar mais concreto.

O fato é que vocês jovens graduados não fazem idéia do que realmente significa “dia após dia”. Há por acaso partes enormes da vida adulta americana sobre as quais ninguém fala nesses discursos de formatura. Uma dessas partes envolve tédio, rotina e frustrações triviais. Seus pais vão saber muito bem do que eu estou falando.

Por exemplo, digamos que é um dia comum, e você acorda de manhã, e você vai pro seu trabalho exigente, e você trabalha duro por nove ou dez horas, e no fim do dia você está cansado e estressado, e tudo que você quer fazer é ir pra casa e jantar e talvez relaxar por algumas horas e então cair na cama cedo porque você tem que acordar no dia seguinte e fazer tudo de novo. Mas aí você lembra que não tem comida em casa – você não teve tempo de fazer compras essa semana, por causa do seu trabalho exigente – e então agora, depois do trabalho, você tem que entrar no seu carro e dirigir até o supermercado. É o fim do expediente, e o tráfego está horrível, então chegar no lugar demora muito mais do que deveria, e quando você finalmente chega lá, o supermercado está muito cheio, porque, é claro, é a hora do dia que todas as outras pessoas com emprego também tentam espremer um tempo pra fazer compras, e a iluminação da loja é fluorescente e medonha, e no som toca algum pop corporativo ou Muzak que destrói a alma, e é basicamente o último lugar que você quer estar. Mas você não pode entrar e sair rapidamente: você tem que vagar pelos corredores lotados dessa loja enorme e exageradamente iluminada para achar as coisas que você quer, e você tem que manobrar o seu carrinho de compras enferrujado por todas essas outras pessoas cansadas e apressadas que também empurram carrinhos, e é claro que também estão lá as pessoas idosas se movendo num ritmo glacial e as pessoas espaçosas e as crianças que bloqueiam os corredores e com as quais você tenta ser educado quando pede para elas deixarem você passar – e finalmente, você pega tudo que precisa pro jantar, só que agora não tem caixas abertos suficientes apesar de ser a correria do fim do dia, então a fila do caixa está incrivelmente longa, o que é estúpido e irritante, mas você não pode despejar sua fúria na moça agitada trabalhando no caixa, que está sobrecarregada num emprego cujo tédio diário e insignificância ultrapassam a imaginação de qualquer um de nós nessa faculdade prestigiada.

De qualquer forma, você finalmente chega na frente do caixa, e paga pela sua comida, e espera receber seu cartão autenticado pela máquina, e então desejam-lhe “um bom dia” numa voz que é a absoluta voz da morte, e então você tem que levar seus sacos de plástico frágil no seu carrinho através do estacionamento cheio, esburacado e sujo, e você tenta colocar os sacos no seu carro de forma que tudo não caia das sacolas e role pelo seu porta-malas no caminho para casa, e então você tem que dirigir para casa no tráfego lento de hora do rush, cheio de SUVs e picapes, etc, etc.

O ponto é que merda trivial e frustrante desse tipo é exatamente onde entra o trabalho de escolher. Porque os engarrafamentos e corredores lotados e longas filas do caixa me dão tempo para pensar, e se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar e no que prestar atenção, eu vou ficar enfezado e miserável toda vez que eu for comprar comida, porque minha configuração padrão natural é a certeza de que situações como essa são na verdade só sobre mim, sobre minha fome e meu cansaço e meu desejo de chegar em casa, e vai parecer que todos os outros estão no meu caminho, e quem é esse povo, mesmo? E olha o quão repulsivo é boa parte deles, e como aqui na fila do caixa eles parecem estúpidos, olhos mortos, não-humanos, como vacas, ou o quão irritante e rude são as pessoas que estão falando alto no celular no meio da fila, e olha como isso é profundamente injusto: eu trabalhei duro o dia inteiro e estou faminto e cansado e não posso nem chegar em casa para comer e relaxar por causa de todo esse maldito povo idiota.

Ou, se eu estou na forma mais socialmente consciente da minha configuração padrão, eu posso passar o tempo no engarrafamento do fim do dia ficando irritado e enojado com todos esses SUVs e picapes e caminhonetes enormes, idiotas, que bloqueiam pistas, queimando e desperdiçando seus tanques egoístas de 40 galões de gasolina, e eu posso considerar o fato de que adesivos religiosos ou patrióticos costumam estar pregados nos veículos maiores e mais egoístas, dirigidos pelos motoristas mais feios, imprudentes e agressivos, que geralmente estão falando no celular enquanto cortam os outros pra avançar 10 metros idiotas num engarrafamento, e eu posso pensar sobre como os filhos dos nossos filhos vão nos desprezar por gastar todo o combustível do futuro e provavelmente estragar o clima, e quão mimados e estúpidos e nojentos nós somos, e como a sociedade consumista moderna é um saco, e assim por diante. Você entendeu.

Se eu escolher pensar assim na loja ou na rua, tudo bem, muitos de nós pensam – só que pensar dessa forma costuma ser fácil e automático e não precisa ser uma escolha. É a minha configuração padrão natural. É a forma automática de como eu vivo as partes chatas, frustrantes e lotadas da vida adulta quando eu estou operando na crença automática, inconsciente de que eu sou o centro do mundo, e que minhas necessidades imediatas e sentimentos são o que deve determinar as prioridades do mundo.

A questão é que, é claro, há formas completamente diferentes de se pensar sobre esses tipos de situações. Nesse trafego, todos esses veículos parados no meu caminho, não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes já estiveram em acidentes de carro horríveis no passado e agora acham dirigir tão aterrorizante que seus terapeutas praticamente ordenaram que elas comprem uma caminhonete grande e pesada para que se sintam seguras o suficiente para dirigir novamente. Ou que a picape que acabou de me cortar talvez esteja sendo dirigida por um pai cujo filho esteja ferido ou doente no banco de passageiros, e ele está tentando levar essa criança pro hospital, e ele está numa pressa maior e mais legítima que a minha – ou seja, sou eu que estou no caminho dele. Ou eu posso me forçar a considerar a possibilidade de que todo mundo na fila do supermercado está tão entediado e frustrado quanto eu, e que algumas dessas pessoas tem uma vida mais difícil, tediosa e dolorosa que a minha.

Novamente, por favor não ache que eu estou dando conselho moral, ou que estou dizendo que você deve pensar dessa forma, ou que qualquer um espere que você automaticamente faça isso. Porque é difícil. Requer determinação e esforço, e se você é como eu, alguns dias você não vai conseguir fazê-lo, ou simplesmente não vai querer.

Mas na maioria dos dias, se você está ciente o bastante para se dar uma escolha, você pode escolher outra forma de olhar para essa senhora obesa, de olhos mortos e maquiagem exagerada, que acabou de gritar com o filho na fila do supermercado. Talvez ela não seja assim, geralmente. Talvez ela esteja acordada três noites seguidas segurando a mão do seu marido que está morrendo de câncer ósseo. Ou talvez essa mesma senhora seja a atendente do departamento de veículos motorizados, que ontem mesmo ajudou a sua esposa resolver algum problema chato através de um pequeno ato de bondade burocrática.

É claro, nada disso é provável, mas também não é impossível. Só depende do que você quer considerar. Se você tem certeza automática de que sabe o que a realidade é, e você está operando na sua configuração padrão, então você, como eu, provavelmente não vai considerar possibilidades que não são irritantes ou miseráveis. Mas se você realmente aprender como prestar atenção, então você saberá que existem outras opções. Estará dentro da sua capacidade vivenciar uma situação lotada, lenta e quente como não só significante, mas sagrada, uma chama como a que criou as estrelas: amor, companheirismo, e a unidade mística de todas as coisas, no fundo.

Não que essa coisa mística seja necessariamente verdade. A única coisa que é Verdade com v maiúsculo é que você decide como vai tentar vê-la.

Essa, eu afirmo, é a verdadeira educação, a de aprender como ser bem ajustado. Você vai conscientemente decidir o que tem significado e o que não tem. Você decide o que venerar.

Porque aqui está algo que é estranho mas real: nas trincheiras diárias da vida adulta, não existe algo como o ateísmo. Não existe “não venerar”. Todo mundo venera. A única escolha que temos é o que venerar. E a razão convincente para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja JC, Alá, ou a Deusa Mãe dos Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto de princípios éticos invioláveis – é que praticamente qualquer outra coisa que você venerar vai te comer vivo.

Se você venera dinheiro e coisas, se é aí que você encontra significado verdadeiro na vida, então você nunca terá o suficiente. É a verdade. Venere o seu corpo e beleza e atração sexual, e você sempre vai se sentir feio. E quando o tempo e idade começarem a aparecer, você vai morrer um milhão de mortes antes de finalmente te enterrarem. De certa forma, nós já sabemos dessas coisas. Elas já foram codificadas em mitos, provérbios, clichês, epigramas, parábolas – o esqueleto de toda grande história. O truque é manter a verdade evidente na consciência diária..

Venere o poder, e você vai acabar se sentindo fraco e medroso, e você vai precisar de ainda mais poder sobre os outros para entorpecer o seu próprio medo. Venere seu intelecto, ser visto como esperto, e você vai acabar se sentindo estúpido, uma fraude, sempre à beira de ser descoberto. Mas a coisa insidiosa sobre essas formas de veneração não é que elas são más ou perversas – é que elas são inconscientes. Elas são a configuração padrão. São o tipo de veneração em que você gradualmente se acomoda, dia após dia, ficando mais e mais seletivo sobre o que você vê e como você mede valor sem jamais estar totalmente ciente do que está fazendo.

E o suposto mundo real não irá te desencorajar de operar na sua configuração padrão, porque o suposto mundo real de homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa piscina de medo e raiva e frustração e desejo e veneração de si mesmo. Nossa própria cultura atual canalizou essas forças de formas que geraram extraordinária riqueza e conforto e liberdade pessoal. A liberdade de sermos senhores dos nossos pequenos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, sozinhos no centro de toda a criação. Esse tipo de liberdade tem vários méritos. Mas é claro que há vários tipos diferentes de liberdades, e no grande mundo lá fora de querer e conseguir, você não irá ouvir muito sobre o tipo mais precioso. O tipo realmente importante de liberdade envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente se importar com outras pessoas e se sacrificar por elas repetidamente numa miríade de formas triviais e pouco excitantes.

Essa é a verdadeira liberdade. Isso é ser educado, e saber como pensar. A alternativa é a inconsciência, a configuração padrão, a corrida maluca, a constante e torturante sensação de ter tido, e perdido, alguma coisa infinita.

Eu sei que essas coisas não soam divertidas ou joviais ou grandiosamente inspiradoras como um discurso de formatura deve soar. O que isso é, até onde eu sei, é a Verdade com v maiúsculo, com uma porção de sutilezas retóricas removidas. Você está, é claro, livre para pensar disso o que você quiser. Mas por favor não o rejeite como algum sermão hipócrita. Nada disso é realmente sobre moralidade ou religião ou dogma ou questões fantasiosas sobre vida após a morte. A Verdade com v maiúsculo é sobre vida antes da morte. É sobre o valor real de educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência – consciência daquilo que é real e essencial, tão escondido na obviedade ao nosso redor, o tempo todo, que nós temos que continuar relembrando repetidamente:

“Isto é água.”

“Isto é água.”

É inimaginavelmente difícil fazer isso, se manter consciente e vivo no mundo adulto dia após dia. O que significa que mais um grande clichê acaba sendo verdade: sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. Eu lhes desejo muito mais que sorte.
comentários(0)comente



Leonardo 22/04/2014

Bela porta de entrada para o universo de um gênio
Creio que a primeira vez que vi o nome de David Foster Wallace impresso na capa de um livro foi numa edição de The Pale King. Devo inicialmente ter me interessado pelo título por imaginar que se tratasse de um livro de fantasia medieval, ideia que logo se mostrou equivocada. Provavelmente, ao pesquisar sobre o autor, descobri que ele deixou uma obra-prima – Infinite Jest – e que era aclamado como um dos grandes romancistas americanos das últimas décadas. E que, infelizmente, cometeu suicídio em 2008, o que contribuiu sobremaneira para elevá-lo ao posto de um autor “super cult”.

Deixei-o de lado, afinal, seus livros ainda não haviam sido traduzidos para o português. Enquanto sua obra-prima trata-se de um livro imenso (1104 páginas), The Pale King, um romance inacabado, não me atraía.

Quase dois anos se passaram e vi que a Companhia das Letras lançou uma coletânea de ensaios do escritor americano, esta ora resenhada. Quando fui pesquisar sobre os ensaios, não me animei. Acabei cedendo à curiosidade e pedi o livro por conta da parceria com a editora, mas estava certo de que seria apenas “uma leitura para colocar no meu currículo”. Eu não gostaria do livro. Lembro de ter lido que David Foster Wallace era comparado a James Joyce e mesmo a Thomas Pychon, por conta de sua escrita intrincada e quase inacessível. “Deve ser um pedante, um arrogante”, pensei. O título do livro já não ajudava. Que jogo de palavras mais esnobe este “Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”!

Aí lembrei da figura do escritor – sua cara de cantor de banda de rock, seus quase dois metros de altura – e tive certeza: este é um livro que vou me arrastar muito pra ler. Vai ser difícil vencê-lo.

O primeiro ensaio é aquele que dá nome ao livro. David Foster Wallace foi convidado por “uma revista classuda da Costa Leste” a cobrir a Feira Estadual de Illinois, uma daquelas feiras tipicamente do interior americano, onde caipiras competem para ver quem tem a vaca mais enfeitada, a maior abóbora ou quem faz o mais estranho bolo de cenoura. Tudo isso em proporções épicas, claro. Wallace assume desde o início que aquele será um trabalho pobre enquanto jornalismo, mas que mesmo assim ele tentará entregar algo de interessante.

Demorei um pouco a engrenar, mas fui me acostumando ao seu humor fino e às suas frequente autocríticas. Wallace não tem mesmo pena de si, e não usa isto como recurso literário. Adianto aqui que de tudo o que me chamou a atenção nos seus ensaios, foi a sua sinceridade o que me conquistou. Nestes ensaios, você realmente consegue ouvir a voz do autor. Ele fala das suas limitações, das suas fobias (muitas, incluindo uma inédita “semiagorafobia”), das suas neuras. Tudo com muito bom humor.

Sua capacidade de descrever é notável, e muito contribui para que os ensaios sejam uma leitura deliciosa:

“Outro entupidor de artérias: Orelhas de Elefante. Uma Orelha de Elefante é uma extensão de massa frita em óleo do tamanho de uma capa de LP, besuntada com uma camada generosa de manteiga açucarada com canela, uma espécie de torrada de canela do inferno, moldada realmente de fato como uma orelha, surpreendentemente apetitosa, no fim das contas, mas enjoativamente macia, com a textura de uma carne adiposa e de inegáveis proporções elefantinas – ninguém além dos obesos mórbidos faz fila para comprar as Orelhas.”

Descrevendo algumas crianças:

“Os proprietários das vacas são crianças de fazenda, crianças profundamente rurais de municípios nos confins do mundo, tais como Piatt, Moultrie, Vermilion, todos campeões de Feiras Municipais. Estão compenetradas, nervosas, infladas de orgulho. Trajes rurais. Cabelos bem curtos, cor de palha. Elevado número de sardas per capita. São crianças notáveis por um certo tipo de mediocridade rockwelliana clássica dos Estados Unidos, produto de dietas balanceadas, trabalho árduo e sólida educação republicana.”

Claro, o principal neste ensaio e no seguinte – sobre um cruzeiro – é o que ele escolhe nos contar, os detalhes que seu olho crítico não deixa escapar. Na feira, nós o acompanhamos em visitas a porcos, cavalos, ovelhas, no grande espaço de alimentação, com filas quilométricas e, principalmente, nos brinquedos que proporcionam “Experiências de Quase-Morte”, algo completamente incompatível com a sua natureza:

“Para mim é como pagar para se envolver num acidente de carro. Não entendo qual é o sentido; nunca entendi. Não é uma coisa regional ou cultural. Acho que é uma questão de constituição neurológica básica. Acho que o mundo pode ser dividido direitinho entre quem se empolga com a indução controlada do terror e quem não se empolga. Não acho o terror empolgante. Acho aterrorizante. Um dos meus objetivos de vida básicos é submeter meu sistema nervoso à menor quantidade de terror possível.”

O segundo ensaio – Uma coisa supostamente divertida que eu nunca mais vou fazer – é semelhante ao primeiro em sua natureza: trata-se de um relato de mais de 120 páginas de um cruzeiro de luxo de sete noites pelo Caribe, também a pedido de uma revista (só para eu não esquecer, o primeiro ensaio tem 80 páginas e ao final você compreende o porquê do título). Achei o segundo ensaio ainda melhor que o primeiro. É mais divertido e você conhece Wallace bem melhor, porque, como falei anteriormente, ele é muito sincero e transparente. Tenho que comentar que foi aqui que o nó na garganta com que terminei a leitura começou a aparecer. É que fui percebendo que caramba, David Foster Wallace era um cara legal! Muito legal, um cara, como diria alguém alhures, “super do bem”. Não é um gênio metido, enfurnado em seu próprio mundo e que se julga acima dos hábitos desprezíveis do americano médio. Ele realmente critica esses hábitos, mas com muito bom humor, e não se nega até mesmo a participar de concursos ridículos a bordo do navio. Eu lia o ensaio e me perguntava, lamentando: “Por que ele se matou?”

Uma das características marcantes na literatura de Wallace são suas generosas e frequentes notas de rodapé (em alguns casos há notas de rodapé dentro das notas de rodapé), todas, entretanto, necessárias e colocadas de um modo que não amarram a leitura.

“O Capitão Nico109 não venceria nenhuma medalha de oratória com seu inglês, mas fornece um genuíno festival de dados concretos. Ele tem mais ou menos a minha idade e altura, mas é tão bonito que chega a ser ridículo, 110 uma espécie de Paul Auster extremamente malhado e bronzeado.

109 O Nadir tem um Capitão, um Segundo-Capitão e quatro Oficiais-Chefes. O Capitão Nico é um desses Oficiais-Chefes; não sei por que ele é chamado de Capitão Nico.

110 Outra coisa que aprendi neste Cruzeiro de Luxo é que nenhum homem pode ter melhor aparência do que a obtida num uniforme branco de gala de oficial naval. Mulheres de todas as idade e níveis de estrogênio desmaiavam, suspiravam, estremeciam, piscavam, grunhiam e vibravam durante a passagem de um desses oficiais gregos resplandecentes, um fenômeno que, imagino, não ajudava nem um pouco os gregos a serem humildes.”

Este ensaio está repleto de situações impagáveis, como a descrição do próprio Wallace para a sua derrota no xadrez para uma menininha prodígio (ele até que joga razoavelmente bem, no seu próprio julgamento), cuja mãe, sem dúvida, era uma daquelas tiranas do xadrez. Ou a aposta unilateral do professor de pingue-pongue do cruzeiro (de quem ele sempre ganhava), que insistia que após um certo número de vitórias ele (o professor) ganharia o cobiçado boné do Homem-Aranha, acessório sem o qual David Foster Wallace não jogava. Além, é claro, da sua já citada capacidade de descrever as coisas:

“São o tipo de homem que parece estar fumando charutos mesmo quando não está fumando charutos.”

Ou, falando do café:

“E o café do Café Windsurf – que borbulha alegre de torneiras em imensas cafeteiras de aço escovado – o café é simplesmente o tipo de café que faria você se casar com alguém capaz de prepará-lo. Em geral eu tenho um limite firme e neurologicamente imperativo de uma xícara de café, mas o café do Windsurf é tão bom e o trabalho de decifrar as imensas manchas rorschachianas das minhas anotações da Palestra Sobre Navegação é tão exaustivo que nesse dia acabo excedendo o limite, e excedendo muito, o que pode ajudar a explicar porque as horas seguintes deste registro estão meio caleidoscópicas e dispersas”.

Ou falando de mulheres que usam roupas de malhação na academia do navio:

“E nessas máquinas há pessoas usando elastano que me inspiram uma vontade enorme de levar para um cantinho e recomendar da forma mais diplomática e amorosa possível que nunca usem elastano.”

Os dois ensaios acima ocupam mais de metade do livro. Há ainda outros completamente diferentes:

Alguns comentários sobre a graça de Kafka dos quais provavelmente não se omitiu o bastante, no qual ele fala do humor em Kafka a partir de um miniconto seu (este aqui);

Pense na lagosta, no qual Wallace discute a respeito do possível dilema ético de ferver lagostas vivas para satisfazer nosso paladar;

Isto é água, um tocante discurso de paraninfo que realmente me deixou com o nó na garganta em definitivo. Wallace fala sobre tolerância, sobre ser uma pessoa melhor para si e para os outros para ser mais feliz.

“Pois aqui está uma outra verdade. Nas trincheiras cotidianas de uma vida adulta, não existe isso de ateísmo. Não existe isso de não venerar. Todo mundo venera. Nossa única escolha é o que venerar. E se existe uma ótima razão para talvez escolher venerar algum tipo de deus ou coisa espiritual – seja Jesus Cristo ou Alá, YHWH ou uma deusa-mãe wiccan, as Quatro Verdades Nobres ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que praticamente todas as outras coisas vão devorar vocês vivos. Quem venerar o dinheiro e os bens materiais, quem buscar neles o sentido da vida, nunca terá o suficiente. Nunca terá a sensação de que tem o suficiente. É a verdade. Quem venerar o próprio corpo, beleza e encanto sexual sempre vai se achar feio, e quando o tempo e a idade começarem a deixar marcas morrerá um milhão de mortes antes de finalmente ser enterrado por alguém. De certo modo, todo mundo já sabe disso – está codificado em mitos, provérbios, clichês, máximas, epigramas, parábolas; no esqueleto de toda boa história. O grande truque é conseguir manter a verdade na superfície da consciência em nossas vidas cotidianas. Quem venerar o poder vai se sentir fraco e amedrontado, e precisas de cada vez mais poder para conseguir afastar o medo. Quem venerar o intelecto, ser visto como inteligente, vai acabar se sentindo burro, uma fraude na iminência de ser desmascarada. E por aí vai.”

Por que ele escreveu isso para aqueles alunos? Para que eles pudessem “chegar aos trinta, ou quem sabe aos cinquenta, sem querer dar um tiro na cabeça”.

E ele mesmo fez algo similar ao se enforcar… Não, ele não estava sendo hipócrita. David Foster Wallace viveu vinte anos, segundo seu próprio pai, lutando contra a depressão. Depois de tentar um novo método, caiu na depressão novamente e, ao retornar ao seu antigo medicamento, descobriu que ele não mais surtia efeito, o que deve ter sido desesperador.

O texto final é um brinde para quem gosta de tênis. Descobri que além de gênio e de ser um gigante de cabelos compridos com cara de roqueiro, David Foster Wallace foi jogador quase profissional de tênis. Em “Federer como experiência religiosa” ele acompanha a final de Wimbledon de 2006, um dos grandes jogos da história do tênis, entre Federer e Nadal. Ele reverencia Federer, explicando porque vê-lo jogar é quase uma experiência religiosa. Só lendo para ver.

Terminei o livro um pouco triste, mas os motivos já foram expostos. Nada a ver com o livro em si. Soube que a Companhia das Letras está traduzindo Infinite Jest. Não vejo a hora de ler, assim como, bem antes disso, conferirei seu outro trabalho já traduzido para o português, o livro de contos Breves entrevistas com homens hediondos.

Minha Avaliação:

4 estrelas em 5.

site: http://catalisecritica.wordpress.com
comentários(0)comente



KenEdy 28/01/2013

Recomendado
Escritor ímpar, um intelectual "pop", crítico mordaz da sociedade contemporânea; sarcástico mas tolerante com os indivíduos comuns. Neste livro ele explora detalhes de eventos para os quais ele foi pago para escrever por revistas renomadas como Harper's, Gourmet e New York Times. Interessante o uso massivo das notas de rodapé. Agora vamos esperar pela tradução de Infinite Jest, sua obra prima.
comentários(0)comente



sobota 13/12/2012

Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, David Foster Wallace
Desvincular a experiência pós-moderna da narrativa de David Foster Wallace (em algum estágio da sua obra, pelo menos) parece impossível. Ler alguns dos contos de Brief interviews with hideous men (lançado no Brasil pela Companhia das Letras; me refiro ao original neste texto porque só tive acesso a ele) é missão de especialista: Datum centurio por exemplo, é praticamente impenetrável.

Mas, após a leitura de um artigo do professor Caetano Galindo¹ (especialista na obra de DFW), podemos dizer que Brief interviews... é um momento de transição na obra do escritor americano. Uma transição da experiência puramente pós-moderna de “narratividade” (que redundou nas suas produções iniciais) e a fase final do trabalho de Wallace, que remete, segundo Galindo, a uma negação de um sistema irônico inerente à cultura norteamericana no final do século XX.

Esse sistema é para Wallace (de acordo com Galindo) uma postura ética que limita as possibilidades da escrita de ficção assim como as suas próprias contestações. Simplificando, é uma luta contra esse conformismo, contra essa aceitação passiva de fatores culturais que vai, enfim, “mover o futuro projeto ficcional de Wallace”.

No artigo, Galindo reúne e faz uma reflexão sobre as próprias reflexões de Wallace em um ensaio entitulado E unibus pluram, que por alguma razão ficou fora de Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo (Companhia das Letras, 2012, trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari). Naquele ensaio, Wallace fala da influência da TV no imaginário cultural norteamericano, especialmente do fator irônico autoconsciente que a TV impõe, fator também exercitado pela ficção escrita. Segundo Galindo,

“E o que David Foster Wallace parece ter vontade de "reabilitar" é precisamente uma literatura triste, emocional, sincera em sua relação ficcional com o leitor. Evitando os cutucões do cotovelo do ironista e as artimanhas dos narradores indignos de confiança, especialmente dedicados a tentar passar a perna nesse leitor. Urn leitor que tem como principal finalidade se juntar ao sorriso acre do autor que de tudo descrê e que apenas reafirma esse fato.”

Continue lendo (copie e cole o link): http://bibliotecavertical.blogspot.com.br/2012/12/ficando-longe-do-fato-de-ja-estar-meio.html
comentários(0)comente



37 encontrados | exibindo 31 a 37
1 | 2 | 3


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR