spoiler visualizar.Igor 04/12/2022
Estava todo animado separando uns livros para reler nos próximos meses, aí lembrei de "Eu Sou A Lenda", mas qual não foi meu choque quando vi que minha edição tinha desaparecido! Ok, isso foi bem dramático e tal, mas foi uma tragédia, adorava o livro, e acho que emprestei pra alguém, mas não lembro quem... Enfim, ainda achei uns rascunhos então vou usar eles pra deixar esse texto mais completo, pelo menos vai me ajudar a relembrar meu pobre livro.
"O mundo ficou louco, pensou.
Os mortos andam por aí e eu acho isso normal."
O medo de ficar só é algo profundamente enraizado em animais sociais, e o ser humano não é uma exceção à essa regra, pelo contrário: talvez seja o mais afetado por ela. Daniel Defoe explorou esse medo da solidão com "Robinson Crusoe" (1719), com a história do náufrago que viveu 28 anos isolado em uma ilha. No caso do sr. Crusoe, ele não passou todo esse tempo realmente só, já que de vez em quando alguém aparecia na sua ilha, ainda que por pouco tempo (OK, esse resumo é horrível, admito, mas "Robinson Crusoe", apesar de ser um livro no mínimo inspirador, é bem cansativo pra se resumir adequadamente em pouco tempo).
Richard Matheson, no entanto, pegou essa ideia de isolamento e a expandiu de uma forma tão magnífica que até hoje inspira escritores.
Neville está isolado, não em uma ilha deserta, e sim em terra firme, perto de todos os seus familiares e conhecidos, pelo menos a princípio. Mas a praga misteriosa que surge é impiedosa e ataca a todos sem distinção. Pouco a pouco, as pessoas vão morrendo, seus vizinhos, seus amigos, sua família. O mundo não sabe como reagir ao seu próprio fim. Mas aí, aqueles que morreram começam a se erguer de seus túmulos. Cientistas - os que restaram deles - tentam procurar formas de explicar essas criaturas que deveriam estar mortas, mas não há tempo. Logo, uma palavra é sussurrada por aqueles que ainda sobrevivem, e se espalha como fogo em palheiro, levando o medo consigo: vampiros. Não tarda para que Neville seja o único sobrevivente, sem ter a mínima ideia por qual razão.
Nos primeiros meses, ele se força a não pensar muito em razões, há algo mais importante a se fazer: sobreviver. Mas sobreviver em um mundo tomado por uma doença impiedosa, que transformou cada homem, mulher e criança do planeta em algo digno dos pesadelos mais sombrios, vale à pena?
"Lá pelas duas da tarde, estacionou o carro e comeu seu almoço. Tudo parecia ter gosto de alho. Isso o fez pensar no efeito que o alho tinha sobre eles. Tinha que ser o cheiro que os afugentava. Mas por quê?
Era estranho o que se sabia a respeito deles: que ficavam abrigados durante o dia, que evitavam alho, que morriam por meio de estacas, que sabidamente se amedrontavam diante de uma cruz, que talvez se sentissem ameaçados pelos espelhos.
Pegue esse último, por exemplo. De acordo com a lenda, não seria possível ver o reflexo desses seres em espelhos, mas ele sabia que isso não era verdade. Como também era falsa a crença de que eles se transformavam em morcegos. Essa era uma superstição que a lógica, aliada à observação, facilmente descartava. Era igualmente ridículo acreditar que podiam se transformar em lobos. Sem dúvida nenhuma havia cães-vampiros; ele os tinha visto e ouvido do lado de fora de sua casa, à noite. Mas eram apenas cachorros.
Robert Neville apertou os lábios, subitamente. Esqueça, ele disse a si mesmo. Você ainda não está pronto. Chegaria o tempo em que tentaria reunir essas respostas, detalhe por detalhe, mas a hora não era essa. Havia coisas o bastante com que se preocupar, por ora.
Depois do almoço, foi de casa em casa e usou todas as suas estacas. Ele tinha quarenta e sete estacas."
Matheson fez algo extremamente ousado para sua época: pegou uma lenda gótica bastante popular e a desconstruiu, pedaço por pedaço, em um enredo surpreendentemente científico. Vampiros andavam por aí e caçavam Neville à noite, mas o que eram eles? Enquanto luta para sobreviver, essas perguntas também o perseguem, cada vez mais insistentemente.
" 'A força de um vampiro é que ninguém irá acreditar que ele existe.'
Obrigado, doutor Van Helsing, ele pensou, colocando de lado sua edição de Drácula. Sentou-se encarando aborrecido sua estante, ouvindo o Segundo Concerto para Piano de Brahms, com um whisky sour na mão direita e um cigarro entre os lábios.
Era verdade. O livro era um amontoado de superstições e clichês de novela, mas essa frase era real; ninguém tinha acreditado que eles existiam. Como poderiam lutar contra algo que sequer acreditavam?
A situação havia se desenrolado da seguinte forma: algo negro e saído da noite veio rastejando da Idade Média. Algo inexplicável e inacreditável, algo que já aparecia, em todos os detalhes, nas páginas da literatura imaginativa. Vampiros estavam fora de moda; idílios de Summer, melodramas de Stoker, uma pequena referência na Encyclopaedia Britannica, munição para a indústria de escritores de revistas baratas, material para as fábricas de filmes de baixo orçamento. Uma lenda tênue, passada de um século para o outro.
Bem, era verdade.
Ele deu um gole em seu drinque e fechou os olhos enquanto o líquido frio corria por sua garganta e aquecia seu estômago. Era verdade, pensou, mas ninguém teve a chance de ficar sabendo disso. Ah, todos sabiam que era alguma coisa mas não podia ser aquilo. Aquilo, não. Aquilo era coisa da imaginação, aquilo era superstição, aquilo não existia.
Então, antes de a ciência ser arrebatada pela lenda, a lenda engoliu a ciência e todo o resto."
Enquanto luta para sobreviver e buscar respostas para essas perguntas, Neville vai afundando cada vez mais em uma espiral de auto destruição regada a álcool e ações que ele nunca faria caso estivesse são; um comportamento paradoxal que Neville percebe, discute, contesta, mas não consegue mudar. Mas de alguma forma, ele quer, não apenas sobreviver, mas viver. A trama que Matheson teceu é fascinante, mas implacável tanto com Neville quanto com o próprio leitor: é um brilhante estudo sobre a mente de um homem que é forçado à uma solidão extremamente cruel, ao mesmo tempo em que levanta questões muito mais que pertinentes sobre ciência, mito, gênero e até sobre a própria noção de preconceito.
"Pobres vampiros, pensou, pobres filhinhos da puta, rondando a minha casa de mansinho, tão famintos, todos tão desesperados.
Uma ideia. Ele levantou o indicador, que balançou diante de seus olhos.
Amigos, eu vim diante de vocês para falar sobre o vampiro; uma forma de minoria, se é que já existiu.
Mas serei conciso: vou delinear a base para minha tese. Que é a seguinte: existe preconceito contra vampiros.
O principal ponto do preconceito contra as minorias é este: elas são odiadas porque são temidas. Portanto...
Preparou um drinque. Dos grandes.
Houve uma época, a Idade Média ou a Idade das Trevas para ser sucinto, em que o poder do vampiro era grande, e o medo que se sentia dele, tremendo. Era anátema e permanece sendo anátema. A sociedade o odeia sem economia.
Mas as necessidades do vampiro são mais revoltantes que a dos outros animais e as dos homens? Seus atos são mais ultrajantes que os de um pai que drena o espírito do próprio filho? O vampiro talvez mantenha batimentos cardíacos e cultive cabelos bagunçados. Mas ele é pior que um pai que presenteia a sociedade com um filho neurótico que acaba por se tornar um político? Ele é pior que um industrial que tardiamente cria fundações com o dinheiro que conseguiu ao vender bombas e armas para nacionalistas suicidas? Ele é pior que o fabricante de bebidas que fornece produto feito com grãos degradados, a fim de entorpecer ainda mais os cérebros daqueles que, sóbrios, já eram incapazes de pensamento linear? (Tá, eu peço desculpas por essa difamação, eu me rendo à bebida que me alimenta.) Ele é pior, então, que o editor que preenche prateleiras com luxúria e desejo de matar? Em verdade, agora, olhem bem em suas almas, queridos: o vampiro é tão mal assim?
Tudo o que ele faz é beber sangue.
Então por que esse preconceito cruel, esse viés imprudente? Por que o vampiro não pode viver onde bem quiser? Por que ele deve procurar por lugares escondidos, onde ninguém possa encontrá-lo? Por que vocês querem destruí-lo? Vejam, vocês transformaram um pobre inocente sem maldade em um animal assombrado. Ele não possui meios para se sustentar, nem há medidas para garantir-lhe uma educação apropriada e, portanto, ele não possui o privilégio do voto. Não é de se admirar que ele seja compelido a procurar uma existência predatória noturna.
Robert Neville grunhiu rispidamente. Tá bem, tá bem, ele pensou; mas você deixaria sua irmã casar-se com um deles?
Ele deu de ombros. Nessa você me pegou, cara, nessa você me pegou."
Na época que Matheson lançou seu livro, histórias de terror nos EUA seguiam uma trilha definida por grandes mestres como Lovecraft e Poe, e eram publicadas em revistas pulp como a Weird Tales, que começou a ser publicada em 1923. Essas histórias tinham um linguajar rebuscado e normalmente mantinham-se na mesma temática fantástica. Nesse ambiente surge a história de Robert Neville, contada com a escrita ágil, simples e agradável de Matheson; não é de se estranhar que hoje, mais de cinquenta anos depois, "Eu sou a lenda" continua arrebatando leitores e inspirando escritores no mundo todo.
Ao todo, houve três adaptações para o cinema dessa obra: The Last Man on Earth (1964), com Vincent Price; The Omega Man (1971), com Charlton Heston; e I Am Legend (2007), com Will Smith. Cada um desses filmes tem suas particularidades, como por exemplo, os vampiros de The Omega Man são muito mais parecidos com o do livro do que os outros dois, enquanto Will Smith interpreta o melhor Robert Neville de todos. Apesar disso, o livro é muito superior às suas adaptações então, caso se interessem, recomendo muito sua leitura.