Matheus Lins 08/01/2010
http://omegageek.com.br/oneuromancista/2009/02/28/preacher/
O que se passa na mente de Garth Ennis? Essa é uma pergunta que sempre me faço quando me deparo com um novo trabalho do escritor. Após ler Punisher Max, The Boys (que, aliás, também tem um artigo no blog – aqui) e Preacher, chego à conclusão – ou melhor, à impressão – que seu pai era um religioso fanático que o abusava vestido como o Super-Homem; talvez só assim para explicar o asco que o irlandês parece nutrir por determinados tópicos, como o mito dos super-heróis (desconstruído violentamente em The Boys) e o cristianismo (caso deste Preacher), adornados por um sagaz humor-negro e ironia.
Em Preacher, acompanhamos a jornada do reverendo Jesse Custer, sua namorada Tulipa O’Hare e seu amigo Cassidy em busca de Deus. Mas não se trata de uma jornada espiritual. Eles estão literalmente à caça do Todo Poderoso, que fugiu do Paraíso devido ao nascimento de Gênesis – um híbrido de anjo/demônio cujo poder rivaliza com o do próprio Criador – que reside dentro de Jesse.
No primeiro arco de histórias, Gone to Texas, somos introduzidos aos personagens e às suas respectivas histórias: Jesse é um reverendo numa cidade interiorana que eventualmente explode devido à hipocrisia das pessoas, que usam a religião apenas como mera desculpa para tirar pesos da consciência; Tulipa surge em cena alvejando o que parecem ser executivos numa limusine, mas o atentado não ocorre como o esperado e ela logo se vê caçada pelos mesmos. Enquanto corre pela vida, depara-se com Cassidy na sua caminhonete, tenta roubar-lhe o veículo, mas ele não se sente intimidado; ao invés disso, ele lhe dá uma carona.
Concomitantemente a esses ventos mundanos, acompanhamos o desespero passado pelos Adephi – os anjos que sentam à esquerda do trono de Deus – perante a fuga de Gênesis, um híbrido resultante do cruzamento entre um Serafim (arcanjos que sentam à direita do trono de Deus) e um demônio. O ser, de tão poderoso, foi posto em isolamento e sob os cuidados dos Adephi. Posteriormente, ansiando por uma consciência plenamente desenvolvida com a qual mergir e, portanto, evoluir/amadurecer, consegue escapar, indo ao encontro do Reverendo Custer durante um dos seus sermões.
Esse contato com Gênesis lhe proporcionou o poder d’A Palavra, ou seja, a capacidade de fazer com que todo e qualquer ser vivo – independente da sua natureza, seja mundana ou divina – obedeça aos seus comandos. A primeira vez que ele manifestou essa habilidade foi ao gritar a todo um esquadrão de policiais para simplesmente abaixarem suas armas, pedido esse prontamente atendido.
Em ordem de recuperar Gênesis o mais rápido possível, os Adelphi recorrem ao Santo dos Assassinos, um pistoleiro virtualmente indestrutível, de determinação inabalável e impiedosa, disposto a tomar quaisquer medidas que julgar necessárias para assegurar o sucesso da sua missão, por mais extremas que sejam. Mas nem ele resiste ao poder d’A Palavra.
Preacher é uma obra rica em violência gráfica, humor-negro e sexo – mas também de subtextos e ideias. Jesse Custer, por exemplo, encarna vários dos estereótipos comumente associados ao gênero western: bravura, cavalheirismo (com pitadas de machismo), rígidos códigos morais, valorização da amizade etc. Contudo, a referência mais óbvia a ser apontada é “O Duque” – um amigo imaginário, na vida real, o apelido do ator John Wayne, ícone do cinema ianque (notadamente em westerns) – que funciona como um deus ex machina, encorajando o herói sempre quando sua determinação e moral estão em baixa.
Ao mesmo tempo que Ennis vangloreia o mito do cowboy do Velho-Oeste, ele desmistifica outro: o dos vampiros. Esqueça a elegância do Drácula de Bella Lugosi e os vampiros reflexivos de Anne Rice. No mundo de Preacher, vampiros não têm ojeriza a alho, não são vulneráveis à água benta, não são indiferentes para com comidas e bebidas, não precisam dormir em caixões e não têm relação alguma com morcegos. E também não têm presas. Mas bebem sangue e são sensíveis à luz solar.
Não irei me alongar falando dos demais personagens, visto que a HQ conta com uma galeria formidável de coadjuvantes e escrever sobre cada um deles tornaria este artigo exessivamente longo. Entretanto, faço questão de mencionara mais um: o personagem vulgarmente conhecido como Cara-de-Cu. Adolescente, filho de um xerife racista e violento, encontrou refúgio na música do Nirvana e no movimento grunge. Ao saber da morte do seu ídolo, Kurt Cobain, ele tenta trilhar o mesmo caminho, alvejando a si mesmo com um rifle roubado do seu pai. Todavia, ele sobrevive, desfigurado. A sua mãe, não mais suportando o inferno que é o seu núcleo familiar, parte, e seu pai, em completo desgosto pelo que o filho se “tornou”, aje com uma indiferença brutal, como se ele não estivesse ali.
Claro; uma história triste, não é? Pode até ser, mas você dificilmente não se encontrará perigando sufocar por tanto rir graças à escrita afiada de Ennis, capaz de transformar um núcleo com tanto potencial dramático no maior alívio cômico da história. É o humor-negro do irlandês brilhando como o Sol. O Cara-de-Cu (apelido este dado por Cassidy quando o vê pela primeira vez) é uma figura genuinamente tragicômica; é digno de pena, fonte de risos e uma das figuras mais carismáticas e marcantes da HQ.
Preacher foi publicado através do selo Vertigo ao longo de cinco anos, entre 1995 e 2000, em 66 edições mais cinco especiais, além de uma mini de quatro edições protagonizada pelo Santo dos Assassinos. Ao lado de Sandman e d’O Monstro do Pântano, foi responsável por estabelecer e solidicar a linha Vertigo, sendo até hoje o ícone da liberdade criativa sem precedentes que o selo oferece.
No Brasil, o título vem migrando de editora a editora há mais de uma década, as quais partilham em comum o fato de sempre falirem antes de completarem a sua publicação. Atualmente está em mãos da Pixel, cujo último volume de histórias publicado foi Guerra ao Sol (War in the Sun, sexto dos oito). A editora comunicou por volta de Dezembro que passaria por “reformulações internas”, e desde então não anunciou qualquer lançamento. Infelizmente, ou apela-se a scans, ou a compras no estrangeiro, para se ler esta extraordinária obra.