Elaine 04/10/2022
Para ficar de coração partido
Foi difícil conseguir chegar ao fim desse livro. Por mais de uma vez precisei dar uma pausa para respirar. Por mais que eu não costume ter problema com gatilhos, temos vários aqui e bem pesados, sobretudo, se considerarmos que envolve crianças. Então, talvez, seja bom o leitor já começar avisado que vai se deparar tanto com cenas tristes por conta de escolhas equivocadas dos personagens, de injustiças no âmbito privado, das relações individuais, como com as injustiças da guerra e do fundamentalismo. Há cenas de homicídio, estupro, violência contra mulher, execução sumária de pessoas, pedofilia, miséria, fome, um catálogo bem grande de maldade e mazelas. E o contraste entre um passado feliz e um presente devastado só piora aquela sensação de soco no estômago. Quando conhecemos os personagens na infância, brincando em um país onde a guerra ainda não havia chegado e vemos aos poucos como aquele país e as pessoas que nele habitam, sua dignidade, seus sonhos, tudo vai sendo destruído, fica quase impossível não derramar algumas lágrimas. Afinal como diz Amir em certo momento, ele pertencia a uma geração que havia nascido antes daquela que não sabia mais o que era viver sem escutar tiros todos os dias.
O livro nos leva a refletir de uma forma mais ampla sobre os horrores da guerra e do extremismo religioso, a falta de sentido de tudo aquilo, mas, há também uma reflexão sobre os erros que cometemos em nossa vida privada e que nos corroem. É isso que acontece com o protagonista. Amir, o narrador, é o filho do patrão e Hassan o ilho do empregado. Eles têm apenas 1 ano de diferença e tiveram a mesma ama de leite já que a mãe de Amir morreu no parto e a de Hassan o abandonou bebê. Eles aprenderam ainda bem pequenos que pessoas que mamam no mesmo peito terão para sempre um vínculo. Embora não tenham mães, ambos têm pais que zelam por eles e cresceram amigos, em meio a uma infância feliz, cheia de travessuras e brincadeiras como caçar pipas, uma habilidade na qual Hassan costumava ser muito bom.
Hassan tem orgulho da amizade com Amir e está sempre pronto a ajudar e defender o amigo, que ama praticamente como um irmão. Já Amir, embora também sinta uma ligação forte com Hassan, tem uma certa vergonha da amizade por conta do menino ser hazari, uma espécie de casta considerada inferior no Afeganistão daquela época, pelo que entendi. Quando em um dia que era para ser feliz, Amir testemunha escondido uma violência terrível contra Hassan e opta por não defender o amigo e fingir que nada viu, a culpa passa a atormentar o garoto de 12 anos e o leva a fazer algumas coisas bem questionáveis que acabam por mudar a vida dos garotos e interromper a amizade. Coisas que, é claro, ao invés de amenizar pioram a culpa ainda mais. Essa é basicamente a sinopse do livro e o que desencadeia a história e é triste demais como tudo acontece, a forma como os meninos se separam e como aquilo afeta as pessoas em volta deles, no caso, os pais.
Quando o livro começa Amir já é adulto, vive nos Estados Unidos, mas, nunca conseguiu esquecer o que fez quando criança e também o que não fez, nunca conseguiu perdoar a si mesmo. Até que algo acontece e de repente ele se vê na eminência de retornar a sua terra natal uma terra que ele não vê há muitos anos, uma terra que foi destruída pela guerra e pelo Talibã e para qual ela sente muito medo de voltar. E aí começa uma jornada de busca de redenção, que é o tema central da história. Enquanto na primeira metade do livro conhecemos a infância e a família de Hassan e Amir e descobrimos o que separou os meninos, na segunda temos a volta do protagonista a um Afeganistão tomado por talibãs e a parte mais cruel perturbadora da história. Se a primeira parte partiu meu coração mil vezes, foi essa segunda a que realmente o destroçou. É quase inconcebível pensar que coisas assim ocorrem na vida real, o uso do poder e de uma suposta moral para cometer os atos mais imorais contra pessoas inocentes.
Não dá para negar que o livro é bem escrito, fluido, mas, ao mesmo tempo é muito difícil de ler por conta de tantas cenas tristes e/ou pesadas. Daí as pausas vez ou outra para respirar. O que me levou a seguir adiante, além de querer saber o que ia acontecer com Amir e com os demais foi porque li uma resenha que dizia que, pelo menos, o livro tinha final feliz. E confesso que um lado meu sonhou com um final feliz bem clichê mesmo, depois de tanto sofrimento. Um lado meu que queria um epilogo que mostrasse que Amir, Soraia, Sorab conseguiram superar o passado, os traumas e agora estavam todos bem e felizes. Ao invés disso me deparei com um final mais realista que clichê, mais esperançoso que feliz e que me fez terminar o livro aos prantos. Mas, enfim, pode não ter sido o quentinho no coração que eu buscava para aliviar tanta pancada, mas, foi um final bem bonito à sua maneira e tenho consciência que em termos literários muito melhor.