Isabel 19/05/2013Boas intenções não adiantam: sempre existem opiniões diferentes que nos deixam desconfortáveis.
Não falo de preconceitos (desde os declarados até os mais enrustidos e aceitáveis socialmente) e sim de opiniões de facto, posicionamentos pessoais que, como questão privada, devem ser respeitados – mas isso não evita a coceirinha na orelha e o sorrisinho amarelo.
Para mim, em especial, uma dessas opiniões desconfortáveis (que bate forte as vezes) é o hábito dos brasileiros em detestar o Brasil, sua própria gente e costumes. De querer importa tudo por mais ilógico que algumas dessas importações seja. Não que eu ache que a minha terra não tenha defeitos, só discordo que ela é completamente imprestável e de que o que vem de fora é necessariamente melhor.
Por isso, eu sorria que nem uma boba durante a leitura d’A arma escarlate. Mesmo usando uma espécie de importação (as semelhanças com Harry Potter são óbvias e não negadas pela autora) é tão brasileiro e tão crítico ao tal “espírito de vira lata” do qual a maior parte dos meus compatriotas padece.
Comecemos pelo protagonista: Hugo Escarlate é um retrato do Brasil, um menino de 13 anos, filho de uma mãe solteira (evangélica) e morador da favela carioca Dona Marta. No morro pré-pacificação, é claro: o ano é 1998, com a violência atingindo o seu ápice.
Cansado da pobreza e do container infernal onde mora (uma das medidas provisórias de realojamento do governo que de provisória não tem nada) Hugo, como muitos, entra para o tráfico. Infelizmente (ou felizmente, vai saber) o garoto arruma o chefe do morro como inimigo – e a salvação vem via um pombo correio urbano sujo: uma carta de convocação para uma escola de magia escondida no Corcovado.
Sem grandes opções, o garoto resolve acreditar naquela historinha toda, mentindo para mãe e fugindo o mais rápido possível. Extremamente arisco e calejado pela vida dura, Hugo desconfia de tudo e de todos ao chegar na escola, sem amolecer muito, mas deixando-se descobrir coisas novas.
Porque há muito, muito mesmo o que descobrir. Confesso que, mesmo já sabendo de antemão que Renata Ventura havia feito um livro com vários aspectos brasileiros, não achava que ela havia renovado completamente a mitologia criada por JK Rowling. Enorme engano: começando pelos feitiços (que só podem ser ditos em línguas dos povos que formaram a nossa terra) até as criaturas (como, por exemplo, os axés), tudo é tão fantástico e tão lindamente NOSSO! Desde A guerra dos tronos eu não havia me animado tanto com um universo ficcional, e a complexidade do criado pela autora é de dar inveja a qualquer escritor.
Aliás, por falar em complexidade... Ninguém pode acusar A arma escarlate de carecer desse tão poderoso veneno, que pode arruinar ou melhorar completamente qualquer livro. A maior parte dos escritores de infanto-juvenis prefere, por razões óbvias, trabalhar com poucos personagens secundários – os “amigos do protagonista”, digamos assim. Seguindo a tendência que é mais comum nos jovens brasileiros, porém, Hugo tem vários amigos e conhecidos, e é impressionante o sucesso em delinear a personalidade de cada um deles. Abarcando todo o sudeste, a sua escola também tem vários (e lindos) sotaques, retratados, na minha singela opinião de quem não viu tanto quanto queria do país onde vive, muito bem.
Em termos de personalidade, Hugo é um dos personagens mais ambíguos que eu já li – além de sua desconfiança de tudo e de todos, o bruxinho mostra-se, em muitos pontos, egoísta e um pouco inconseqüente. Na verdade, há pouco o que se gostar – mas ainda assim, é complicado não adorar a alguém tão humano.
Tão brasileiro quanto o samba, A arma escarlate já está na minha lista de favoritos. Indicadissimo.
Publicada originalmente em distopicamente.blogspot.com