Zé - #lerateondepuder 23/03/2023
A fome é um grande mote da obra
Em janeiro de 1945, o general soviético Vinogradov exigiu do governo romeno, em nome de Stálin, que todos os alemães residentes na Romênia contribuíssem para a “Reconstrução” da União Soviética destruída durante a guerra. Todos os homens e mulheres com idade entre dezessete e quarenta e cinco anos foram deportados para realizar trabalhos forçados em campos de trabalho soviéticos.
É disso que o livro ora resenhado irá tratar. Em primeira pessoa, narrando as cenas do passado com uma descrição muito detalhada, considerando o ponto de vista do protagonista narrador, na maioria enquanto jovem, é a história de Leo Auberg, contada entre carvão, fome e cimento.
Dessa forma, o protagonista, em seus dezessete anos entra para a lista medonha dos que serão conduzidos até um campo de trabalhos forçados e por lá irá viver os horrores, em forma de medo, solidão e muita fome. Tudo já começa com o deslocamento de trem e uma parada, onde se determina que todos homens e mulheres façam suas necessidades juntos, a primeira de muitas humilhações que lá sofrerão.
A fome é um grande mote da obra, contada e recontada sobre diversos aspectos, como o anjo recorrente dessa ou como sempre renovada, que cresce insaciável, e que salta para dentro de forma tão trabalhosa. Como se anda pelo mundo quando não se tem nada mais a dizer sobre si mesmo, além do fato de estar com fome e não se consegue pensar em mais nada.
Com uma fome que era até mesmo sonhada, a escassa ração de meio pão e uma sopa rala, passa a ser moeda de troca, principalmente o pão. Há uma boa descrição de uma cena em que um determinado prisioneiro pega, talvez nem tão intencionalmente, um pedaço de pão que não lhe pertencia e é severamente punido com castigos físicos, por conta desse ilícito.
Em meio a tanta desolação, Leo encontra tempo para se lembrar de sua juventude pregressa e sua condição de diferente, uma vez que é gay e sabe que sua família não bem aceita sua opção, ainda mais pelos idos de 1940. Mas é pelas palavras de despedida de sua avó, “eu sei que você vai voltar”, que o protagonista se prende a esse destino fatídico, na esperança de que iria um dia deixar o campo de trabalho e retomar sua vida.
Vivendo as pessoas amontoadas em uma rotina de diversas chamadas para controle dos prisioneiros e a ida para o trabalho, principalmente, na aquisição de carvão, por vezes, pairava o sentimento de que a morte de alguns era um verdadeiro momento de fortuna, uma gota de sorte em demasia. Ao olhar para quem havia morrido, era possível perceber, até mesmo, um grande alívio.
O tema do livro vai remeter, justamente, a questão de tão poucos itens materiais que Auberg poderá levar para cumprir seu trabalho forçado, concentrados apenas em uma pequena mala. Em destaque a seus pertences está um lenço que poderia ser trocado por algo comestível, mas ao que o protagonista reluta, acreditando que o lenço seria a única pessoa no campo de trabalho que se preocupava com ele.
Depois de cinco anos, em 1950 há a liberação e o retorno para sua antiga vida, embora não se sentindo feliz. Tudo estava como antes, exceto ele mesmo que encarava toda essa liberdade com vertigens. Nada lhe trazia qualquer interesse, com a total falta de empatia para com sua família.
Acaba encontrando uma esposa e mantém seu casamento por onze anos, separando-se para receber sua velhice de forma solitária. A lembrança dos cinco anos lhe chega sempre à mente, tal qual tenham sido esses roubados de sua alma que se encontra vazia, com a lembrança dos mais de 300 prisioneiros que, juntos com ele, entraram e não saíram com vida, a grande maioria por conta da fome, um assunto que continua assolar seus pensamentos.
Publicado em 2011, “Tudo o que tenho levo comigo” foi concebido por meio de um relato de um conhecido da autora que vivenciou os horrores de um campo de concentração e que falece durante a fase da escrita dessa obra. São 304 páginas de uma narrativa, por assim dizer, dolorosa com um viés de prosa poética.
Por fim, a autoria dessa grande obra é de Herta Müller, uma escritora e poetisa alemã, nascida na Romênia. Herta se destaca por seus relatos das severas condições vividas em seu país natal, sob a constante perseguição do regime político comunista e seu implacável sistema de inteligência perseguidor, o que determinou seu exílio para a Alemanha, onde construiu sua carreira literária.
Em 2009, depois de publicar mais de vinte livros e ser laureada com vários prêmios literários, foi reconhecida pelo Prêmio Nobel de Literatura por, retratar o universo das pessoas perseguidas com sua prosa e poesia.
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