Paulinho 26/11/2014
Poesia e Transgressão
Faz um tempo que queria ler Lavoura Arcaica. Desde que conheci Milton Houtom (Dois Irmãos) em 2011. Porém são tantos livros... esse ano, mais especificamente esse mês decidi reparar minha negligência. O resultado, o melhor livro que li este ano até agora (26 de Novembro). Primeiro a prosa... a poesia. Escrita de maneira lírica linda, o trabalho de escrita é mágico.
“Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, [...].” NASSAR, Raduan, 1935 - Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 3ª edição. A Partida. Capítulo 01. Página 07.
A narrativa é um quebra-cabeças temporal. Um labirinto de memórias que vai e volta no tempo, nos tempos. Inicia com a chegada de Pedro à pensão onde encontra-se André. A partir daí a narrativa segue vários tempos, a infância, a adolescência, os transtornos dos pensamentos de André as relações familiares. O pai rígido, a mãe extremante afetuosa, Lula, o caçula, que o admira, Pedro que parece seguir os passos do Pai, afinal é o primogênito e Claro Ana, que mesmo posta ao avesso continuaria a ser o que é como o próprio nome. Em um ambiente tão gris, tão rotineiro, tão hermético é compreensível que André se apaixone por Ana, apesar dela ser sua irmã. Ana é transgressão e movimento, é cor e calor.
[...] e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana de deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas, e as flores do cesto, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos em cima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante, as mãos graciosas girando no alto, toda ela cheia de uma selvagem elegância, seus dedos canoros estalando como se fossem, estava ali a origem das castanholas, e em torno dela a roda girava cada vez mais veloz, mais delirante, as palmas de fora mais quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e magnetizando a todos, ela roubava de repente o lenço branco de um dos moços, desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça enquanto serpenteava o corpo. NASSAR, Raduan, 1935 – Lavoura Arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 3ª edição. A Partida. Capítulo 5. Página 28-29.
Devido a essa paixão proibida, interdita, mas avassaladora, ele decidi partir. Mas não é apenas essa a questão. André também foge do cabresto, do futuro de cartas marcadas, das montanhas que são muros da sua vida. Da sua mentalidade diferente, uma mentalidade forçada pela sensibilidade avançada, pelos momentos de solidão e monólogos internos. Solidão que fomenta a reflexão. Reflexão sobre o tempo, a família, a vida, o amor, o corpo. Por esse sopro de universalidade e por uma prosa em um português magnífico, uma narrativa que exige trabalho mental do leitor, faz desse livro uma obra de extrema relevância para a nossa literatura e porque não? Pela literatura Mundial. Assim que terminei assisti o filme. Soberbo! Mas isso já é uma outra resenha. Já quero reler esse livro.