Jaqueline 05/03/2011
“Cidade da Penumbra” (“Crépuscule Ville”, no original) é o mais recente romance de Lolita Pille, que chegou ao Brasil em dezembro pela editora Intrínseca. Apesar do choque inicial com uma história de ficção científica assinada pela autora francesa que ficou famosa com “Hell”, um relato existencialista da juventude endinheirada de 16ºeme francês, foi possível perceber em “Cidade da Penumbra” a mesma crítica ácida ao consumismo desenfreado, a busca incessante pela felicidade e pela ditadura da beleza, três pilares da cultura ocidental contemporânea.
Clair-Monde, cidade onde a história se desenrola, em pouco deixa de se assemelhar as grandes metrópoles de hoje. Em certas passagens, como na descrição da torre de luz da cidade, pude facilmente imaginar uma Paris decadente, onde o sol não brilha mais. Neste futuro tempestuoso, temos a Terra afligida por uma poeira que cobre tudo, deixando o planeta na mais pura escuridão. Um mundo de anúncios, luminosos e cartazes iluminam Clair-Monde, recheando os pensamentos das pessoas com promessas de juventude e prazer. Cirurgias plásticas são tão cotidianas quanto compras em um shopping center, contando até mesmo com um Ministério da Aparência. Um sistema de afinidade calcula imediatamente sua compatibilidade sexual com as pessoas ao seu redor. Em uma definição, presente no livro, “se trepa e cheira adoidado” - tudo de forma regulamentada.
A hiperdemocracia é o sistema que satisfaz todos os desejos humanos: liberdade, beleza, riqueza, diversão sem limites. Drogas, prostituição...tudo é liberado e aos montes. “A felicidade é a realidade”, diz o slogan da grande companhia Clair, que regula o mundo com sua inteligência “artificial” e onisciente. No entanto, o suicídio de Colin Parker, um obeso em depressão, coloca em xeque a organização burocrática deste sistema, pelo menos aos olhos de Syd Paradine, policial que trabalha no SPSM (Serviço de Proteção contra Si Mesmo). Esse órgão, assim como tantos outros (Narcóticos, Clandestinos, Preventiva-Homicídios), atua na prevenção de crimes graças à regulação dos Rastreadores, espécie de telefone celular que funciona como cartão de banco, documento de identidade, armazenador de dados, previsor de acidentes em estradas e confessionário. Todos os moradores da cidade possuem um Rastreador e são obrigados a gravar sua confissão diariamente durante 11 minutos. Enquanto lia o livro, a notícia de que o Vaticano havia criado um aplicativo para iPhone que permitia a confissão das pessoas via telefone celular me deixou de cabelos em pé! O mundo virtual também ganha destaque no livro, com perfis que funcionam como cartões de visita de uma pessoa para a outra exatamente como fazemos nos Facebooks e Orkuts do nosso cotidiano. Porém, a ligação entre esse mundo abstrato e a materialidade é muito mais estreita: tornar-se um falido virtual implica necessariamente na sua prisão real por roubo ou fraude.
Após a morte do recluso obeso e dos mistérios que envolvem a morte da Estrela Lila Schüller, Syd passa a desconfiar que diversos casos sejam manipulados para encobrir grandes esquemas de corrupção dentro do SPSM, e é neste clima de investigação do cinema noir que a trama se desenvolve. Seu comportamento rebelde logo faz com que ele passe se torne alvo do SPI (Serviço de Proteção da Informação), e seu encontro com Blue Smith, irmã de um ex-colega da época da Guerra Narcótica (conflito ocasionado pela popularização das drogas pesadas entre os jovens na década de 2020 – alô, futuro próximo!) apenas movimenta a trama deste policial divorciado, alcoólatra e com pinta de canalha, mas dono de uma lucidez chocante, que o faz enxergar além das aparências que dominam Clair-Monde e começam a ruir.
A grande sacada de Lolita Pille foi o deslocamento destas confissões individuais para a vida social, transformando a aparência individualidade em uma regulamentação alienante, que sob o disfarce de oferecer segurança e ampla liberdade à população, exerce o controle infalível de todos os aspectos da vida de uma pessoa. A Grande Central, com todos os requintes do Big Brother de George Orwell, coleta todas essas informações, procedimento que transformarou o modo de vida, as relações afetivas e até mesmo a política neste futuro mais do que possível.
Para quem conhece a obra da jovem autora, o livro “Bubble Gum” já apresentava alguns traços dessa sociedade de controle que regula uma massa alienada. A crítica ao consumismo, à idolatria e a obsessão pela aparência e pelo sucesso sempre estiveram presentes em suas obras, mas não com toques futuristas e tantas influências de cacife. No entanto, não chamaria o livro de genial justamente pelo tema: após tantos e tantos anos, acredito que o tema de um futuro de humanidade alienada e consumida pelos seus maiores regulada pela tecnologia esteja mais do que batido. Se há um ponto interessante neste livro é justamente a reflexão que engendra, mas nada que “1984” e “Admirável Mundo Novo” não tenham feito antes. De qualquer modo, é um livro surpreendente para o calibre de Lolita Pille, de quem não esperava nada além da narração de seu cotidiano como a “putinha” parisiense que pessoalmente adoro.
>> Resenha previamente publicada em www.up-brasil.com