3.0.3 04/01/2024
Aqui, onde o destino real de cada indivíduo é buscar-se
“A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem de destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas.”
A obra “Demian” (1919), do alemão Hermann Hesse (1877–1962), é um romance de formação (Bildungsroman) que narra a história de Emil Sinclair, protagonista que transita entre as vidas profana e pura, experienciando as suas sombras e luzes. Parece-me que nunca é fácil falar sobre algum livro de Hermann Hesse, pois as suas obras são sempre marcadas por passagens que nos convidam a grandes reflexões. A fuga da banalidade humana para encontrar dentro de si a transcendência da vida, núcleo do pensamento de Hesse, também está presente em “Demian”, que, aliás, é visto por muitos como uma espécie de O Lobo da Estepe (1927) adolescente.
“Todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um – resultado de uma tentativa ou de um impulso desde o fundo – tende a seu próprio fim.”
O começo do livro conta a infância de Emil Sinclair e a descoberta dos mundos ideal e real. Ainda que os seus familiares, que retratam o mundo ideal, tentem defender o filho das adversidades da vida, afastando-o de zonas sombrias, o livro nos diz que é por meio da experimentação que evoluímos e expandimos o nosso discernimento sobre aquilo que realmente nos convém. É a partir desses embates que se alcança o ponto nevrálgico do nosso destino.
“Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada.”
Nesse ponto, o sofrimento de Sinclair começa a partir de uma mentira. Tentando impressionar um grupo de colegas, o garoto se gaba de ter furtado alguns objetos que, na verdade, não furtara. Franz Kromer, o garoto mais arrojado do bando, querendo se beneficiar do ocorrido, começa a assediar e a extorquir Sinclair, exigindo do menino dinheiro e outras coisas absurdas, como um encontro com a sua irmã mais velha.
Atormentado por Kromer, surge na escola um novo aluno: Max Demian, um rapaz que representa um ponto de equilíbrio, aquele que já experienciou ambos os mundos e que já alcançou uma consciência maior das circunstâncias da vida. Diferentemente de Sinclair, que hesita e se amedronta perante às adversidades, Demian age com firmeza e coragem, atitudes que despertam a admiração do protagonista. Embora não seja muito mais velho que Sinclair, Demian assume uma postura de orientador do amigo, ajudando-o a solucionar alguns problemas, inclusive o seu impasse com Kromer – o que talvez possa ser lido como a inteligência atravessando e vencendo os mares da irracionalidade e do medo.
“– Falamos em demasia – disse ele com gravidade desacostumada. – As palavras engenhosas não têm qualquer valor, absolutamente nenhum. Só conseguem afastar-nos de nós mesmos. E afastar-se de si mesmo é um pecado. É preciso que se saiba encerrar-se em si mesmo, como a tartaruga.”
Assim como outros livros de Hesse, “Demian” também apresenta diversos elementos místicos e alquímicos. Após uma aula sobre Caim e Abel, Demian desenvolve uma outra chave de leitura para o tema abordado em classe, dizendo que Caim fora, na verdade, um homem ousado e inigualável, pois, à medida em que os demais seguiam um comportamento de gado, Caim tinha uma marca que fazia dele um ser ímpar e corajoso. Aqui, Demian explica para Sinclair que aqueles que carregam consigo o símbolo de Caim conseguem se identificar e conversar espiritualmente, usando habilidades telepáticas. Tomado pela aflição e pela inquietação, Sinclair atravessa conflitos existenciais e, por vezes, também quer fazer parte da massa, mas gradativamente vai tomando consciência da sua singularidade e percebendo que também é um portador do sinal de Caim.
“Nenhuma outra prática nos revela tão singelamente quanto esta até que ponto também somos criadores e como nossa alma participa sempre de uma contínua criação do mundo.”
Outros personagens também são introduzidos à narrativa para ajudar Sinclair em sua fase adolescente. O organista Pistorius, com os seus pensamentos e as suas máximas, é uma figura intrigante que nos leva constantemente à reflexão. Pode-se dizer que, de alguma maneira, ele produz o mesmo efeito que Demian produziu em Sinclair durante a sua infância. Porém, no instante em que Sinclair percebe as limitações de Pistorius e que este não é capaz de guiá-lo integralmente em sua jornada, o livro reforça a filosofia de que cada um é senhor de si e que o trajeto em busca do autoconhecimento precisa ser percorrido por conta própria.
“Desprendeu-se de mim, fugindo às perguntas com que eu o martelava, e sua estranha personalidade continuou inspirando-me os mesmos sentimentos confusos, mescla de gratidão e de receio, de admiração e temor, de simpatia e de íntima repulsa.”
No último terço do livro, a personagem Eva, que é a mãe de seu amigo Demian, contribui para o amadurecimento de Sinclair, como alguém que também carrega consigo o sinal de Caim. Aliás, essa citação a Caim não é a única que faz alusão a trechos da bíblia. Além de ser uma experiência de transcendência, “Demian” critica a tradição judaico-cristã, sugerindo que essa doutrina de vida subtrai do sujeito a capacidade reflexiva e formata as suas condutas. O que fica exposto ao longo da narrativa é a ideia de que nenhuma religião ou doutrina filosófica deve ser seguida cegamente, mas deve ser usada na medida em que se configura como ferramenta para a transcendência pessoal.
“– Sempre é difícil nascer. A ave tem de sofrer para sair do ovo, isso você já sabe. Mas volte o olhar para trás e pergunte a si mesmo se foi de fato tão penoso o caminho. Difícil apenas? Não terá sido belo também? Podia imaginar outro tão belo e tão fácil?”
Com influências de Friedrich Nietzsche e Carl Jung, “Demian” é uma jornada potente em busca de nós mesmos que influencia e provoca leitores do mundo inteiro. Conforme mencionei no início do texto, é sempre complexo escrever sobre alguma obra de Hermann Hesse. Acredito que “Demian” tem muito a contribuir e que todos deveriam lê-lo ao menos uma vez para criar as suas próprias percepções, sobretudo os mais jovens, que ainda estão lapidando os traços de sua personalidade; no entanto, é preciso compreender que o ponto de vista ético de Hermann Hesse, que é o de questionar o status quo das coisas, não significa simplesmente agir ao sabor de suas vontades, sem considerar a perspectiva do outro.
“Por tanto tempo antes solitário, conheci então aquela comunidade que se faz possível entre homens que experimentaram a mais absoluta solidão.”
Como “Demian” é uma obra cheia de simbolismos, é sempre possível encontrar alguma coisa nova em leituras futuras, pois o desdobramento de seus compassos é sempre profundo e um tanto assombroso. Nesse sentido, não podemos perder de vista, por exemplo, que Caim é aquele que carrega consigo o sinal sanguinário de um homicida. Dinamitar o mundo para se reerguer – uma das ideias sustentadas ao longo da narrativa – não significa meramente abalar e destruir as estruturas que se habita, mas, antes, trabalhar sob as suas ruínas para erigir-se como sujeito, um outro, renascido fora das fronteiras da coletividade. “Demian” é um livro iniciático.
“Uma mesma divindade indivisível atua sobre nós e a Natureza, e se o mundo exterior desaparecesse, qualquer um de nós seria capaz de reconstruí-lo, pois a montanha e o rio, a árvore e a folha, a raiz e a flor, todas as criaturas da Natureza estão previamente criadas em nós mesmos, provêm de nossa alma, cuja essência é a eternidade, essência que escapa ao nosso conhecimento, mas que se faz sentir em nós como força amorosa e criadora.”