Ana Sá 17/10/2022
Palmas pra Andréa del Fuego
[Mais adiante eu farei um comentário que pode ser um spoiler, então eu coloco um aviso de "PARE!" pra quem quiser garantir uma leitura mais surpreendente!]
Simples assim: eu adorei este livro, e, ao que tudo indica, ele assumirá o posto de melhor leitura do ano. Um livraço, na minha humilde opinião!
Cheguei a este romance através da lista dos vencedores do Prêmio José Saramago e tamanha foi a minha boa surpresa ao descobrir há pouco ele ganhou uma edição à altura pela Companhia das Letras (a partir de uma conversa que tive aqui no Skoob, não tenho dúvidas de que a foto de capa da Língua Geral é a que mais deixa a desejar, pois ela em nada reflete a riqueza do enredo! A da nova edição da Companhia, além de bela, faz muito mais sentido!). Pois bem: antes tarde do que nunca! Premiado em 2011 em Portugal, espero que o livro seja devidamente aclamado de 2022 em diante no Brasil.
A família Malaquias é composta por três irmãos (Nico, Antônio e Júlia) que são separados já no início da narrativa, em decorrência da morte dos pais (inclusive, estes capítulos iniciais já são muito instigantes!). A partir daí, acompanhamos a trajetória dessas crianças até a vida adulta: um deles se torna imediatamente funcionário de uma fazenda próxima; o outro vai morar com freiras em um orfanato; já a menina passa por uma daqueles processos de "adoção-exploração doméstica" por parte de uma mulher rica que reside em outra cidade. Embora Del Fuego nos apresente uma linguagem concisa e seca, marcada por frases curtas, a obra consegue nos dar uma visão ampliada da personalidade de cada personagem. Suas idas e vindas, seus encontros e desencontros, nos colocam diante de uma obra que, de frase em frase, de ponto em ponto, constrói uma leitura interessantíssima de uma parte (histórica, geográfica, simbólica) do Brasil. Isso porque a narrativa se desenvolve em uma zona rural denominada Serra Morena, um cenário que nos remete a paisagens do interior de Minas Gerais, por exemplo, tendo como acontecimento-chave a chegada de uma hidrelétrica. Eis a eletricidade como símbolo daquele "progresso" que, ao expulsar as pessoas de casa, pode nos levar a questionar: "progresso pra quem?". Eu digo que "pode" porque o romance não parece ter em seu projeto textual um compromisso com a denúncia social, ao menos não de forma evidente. Suas muitas camadas passam por diferentes questões sociais, mas são também diversos os caminhos de leitura que podemos percorrer, sobretudo devido à cereja que é colocada no topo deste bolo literário: seu diálogo com formas do realismo fantástico/mágico (e perdoem a minha anarquia conceitual).
Na minha leitura, Andréa del Fuego é genial no modo como manuseia o insólito! Aqui, merecem destaque as personagens Geraldo e Geraldina que eu consideraria secundárias se não fossem as passagens, mesmo que pontuais, em que a autora os faz brilhar. Eles ficarão em mim como personagens secundárias das mais inesquecíveis. Eles me fizeram lembrar de quando me explicaram que, na literatura, a junção do termo "realismo" a adjetivos que remetem ao extraordinário se justifica em casos nos quais algo nos causa estranheza ao mesmo tempo em que não deixa de nos soar familiar. E é isso que vi em Os Malaquias... Serra Morena é e não é uma Minas Gerais. E esse entrelugar que Del Fuego nos propõe certamente vale a visita! Nele, eu entrei seduzida e parti com saudades (que cena final, aliás!).
Imagino que seu aclamado romance A Pediatra (que eu ainda não li) seja muito diferente de Os Malaquias, ao menos é essa a impressão que a sinopse do primeiro me dá. Se eu estiver certa, se Andréa del Fuego tiver mesmo uma escrita versátil, capaz de transitar do rural ao urbano, do social ao íntimo, maior ainda será a minha vontade de acompanhar o seu trabalho.
[PARE! O comentário a seguir pode ferir pessoas sensíveis a spoilers!]
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Por fim, como sempre acontece quando surge um elemento extraordinário na literatura latino-americana, não falta quem diga: "isso me lembra García Márquez". Sim, este livro vai mexer nesta memória literária sim, mas... A meu ver, há aqui um diálogo literário que salta ainda mais aos olhos, sendo ele, por si só, um spoiler: Serra Morena também me levou de volta a Comala, ao passeio que fiz ao lado de Pedro Páramo... Para uma leitora de Juan Rulfo, meia palavra basta.