Ana Sá 13/10/2023
O ruído do silêncio, a textura da ausência: Jon Fosse nos recorda do que a literatura é capaz
Ao atribuir o Nobel de 2023 a Jon Fosse, a academia sueca exaltou a capacidade de sua obra "dar voz ao indizível", algo bastante notório em seu curto livro "É a Ales". Nele, a partir dos pensamentos e sentimentos de Signe durante os anos que sucedem o dia em que seu marido, Asle, foi ao mar e não mais voltou, acompanhamos o ruído do silêncio de uma casa desde então estruturada pela ausência de quem deveria estar lá. Esse vazio que se torna tão palpável pela caneta de Jon Fosse vem pra nos recordar do que a literatura é capaz.
A repetição incessante, o fluxo de consciência e a pontuação transgressora não são recursos inéditos na literatura. Entretanto, o modo como Jon Fosse articula essas estratégias de escrita parece ser a base de sua digital literária. A alternância de vozes e de tempos narrativos em sua obra é impressionante! O fluxo de consciência e as memórias de Signe se cruzam, frequentemente, com o fluxo de consciência e com as memórias de Asle, justificando o uso autoral da pontuação que Fosse escolhe adotar. E se há repetição atrás de repetição é porque o silêncio da ausência badala todos os dias a mesma hora naquela casa que deveria abrigar dois. A saudade, o luto, tudo que nos esvazia é, afinal, repetição. E assim, o livro me encantou e me entristeceu na mesma medida.
Mas a maestria de Fosse não termina ali. A relação do casal com o espaço interno e externo é excepcional. A casa, para Signe, é o lar de seu matrimônio, agora um espaço mutilado. Para Asle, ela é a casa que abrigou gerações de sua família, daí as memórias dos dois serem povoadas por cenas e por personagens distintos, o que torna fabuloso o (des)encontro de seus fluxos de pensamento. Quanto ao espaço externo, também dotado de significados diferentes para Signe e para Asle, o autor nos faz íntimos do "fiorde", essa paisagem de montanhas invadidas pelo mar, tão característica da Noruega. De uma região onde o frio, a escuridão e a força marítima integram a lista de fenômenos locais, Jon Fosse retira as tintas para compor uma paisagem íntima que soa familiar até para esta leitora de um país tropical. O mar que recorta as montanhas é o mesmo que embeleza e esvazia o horizonte de Signe. Como um fiorde, este livro me encantou e me entristeceu na mesma medida, também eu preciso repetir.
Concordo com o filósofo e crítico literário Terry Eagleton quando ele explica que na literatura há muita continuidade, pois um livro é sempre, em alguma medida, um "déjà vu" do que outros escritores já foram capazes de fazer. Mas isso não significa, como esclarece o britânico, que não há novidade alguma. E Fosse me fez pensar nessa questão justamente porque o fato de eu ter encontrado em seu livro algumas das experiências que já tive com autores como Lispector, Beckett ou Faulkner não me impediu de fechar "É a Ales" e bradar: "Este aqui é Jon Fosse, e não outra coisa!". Nem continuidade absoluta, nem ruptura absoluta com o veio antes, a literatura do norueguês laureado com o Nobel de Literatura nos convida a uma narrativa excelente dos/para os nossos tempos.