Pjmluvx 26/03/2024
Hannibal coquette?
É muito difícil botar em palavras o que é essa novel pra quem nunca leu algo do gênero, mas eu vo tentar. Esse livro é um falso memoir de uma crítica gastronômica que, por acaso, é uma serial killer canibal. Fascinante, né?
Esse livro circula por 3 âmbitos: o das memórias da protagonista (que não são lineares e acabam se intercalando várias vezes); o da comida e crítica culinária (excelente, principalmente se vc for do nicho e gostar de cozinhar igual eu, ou se vc simplesmente for uma pessoa curiosa) e o dos comentários sociopolíticos feitos por ela.
Eu vi muita gente avaliando esse livro como uma sátira feminista, e eu vo botar meu 🤬 #$%!& na reta pra discordar totalmente disso. Eu entendo por quê as pessoas pensam isso, mas essa é uma análise simplista que não abarca o que o livro objetiva. A Dorothy é uma vilã feminina, obviamente, só que ela é principalmente uma antítese, quase uma anti-feminista. Ela é a personificação, em todos os sentidos, de tudo que não se espera ou que se rejeita em uma mulher. Ela não é canibal e assassina por que ela é feminista e odeia homens, até porque todos eram amantes e namorados dela, mas porque ela é constituída essencialmente como uma psicopata narcisista, autocentrada e extremamente intelectualizada.
O mais interessante desse memoir, é que ele é feito pós-encarceramento, ela quer que todo mundo saiba as coisas ?grandiosas? que ela fez. Consequentemente, ela escreve sem filtro, sem as máscaras sociais que ela usou e abusou durante a vida dela, deixando o leitor ver os lugares mais profundos e distorcidos da cabeça dela e abrindo espaço pra gente ver como a Dorothy funciona em situações corriqueiras (com eventuais piadinhas e quebras da 4° parede muito engraçadas).
Boa parte desses monólogos são divididos em comentários sobre a cultura do consumo (que eu achei brilhante e adiciona muito à discussão do veganismo, consumos éticos e ecológicos, etc) e sobre essencialismos de gênero (que tem sim uma boa dose feminista, mas não é o principal. A Dorothy não tá interessada apenas na exploração mental da mulher, mas do ser humano no geral. Existem muitas discussões sobre o existir humano como animais carnais e semi civilizados, trazendo muitas situações, filósofos e personagens históricos que questionam nossos sensos morais).
E por último, não é pra gente gostar dela. Não é pra você se sentir tentado, sensibilizado ou de forma alguma agraciado por essa protagonista. O narcisismo, a crueza e a antipatia são intencionais, o leitor é colocado pra ver essa assassina por quem ela é de verdade, a psicopatia sensual que a gente vê nos filmes faz parte de uma máscara social. O ?feminismo? dela vem das próprias necessidades e desejos perturbados dela, e não porque ela faz parte de qualquer movimento ou quer lutar por alguma categoria social, o objetivo dela é antagonizar um mundo com pessoas que ela odeia e julga inferiores a ela (inclusive as mulheres). Qualquer lição ou reflexão feminista que você tirar dela é um efeito colateral, por assim dizer.
É um livro muito bem escrito, eu não esperava esse tipo de prosa da autora, prende demais. Se você gosta desses tipos de discussões em livros, e não é repudiado por gore, talvez seja uma boa pedida pra você.