carlosmanoelt 05/06/2024
?A mais ínfima fração de um segundo.?
?Viver é uma espécie de loucura que a morte faz. Vivam os mortos porque neles vivemos. De repente as coisas não precisam mais fazer sentido. Satisfaço-me em ser. Tu és? Tenho certeza que sim. O não sentido das coisas me faz ter um sorriso de complacência. De certo tudo deve estar sendo o que é. Hoje está um dia de nada. Hoje é zero hora. Existe por acaso um número que não é nada? que é menos que zero? que começa no que nunca começou porque sempre era? e era antes de sempre? Ligo-me a esta ausência vital e rejuvenesço-me todo, ao mesmo tempo contido e total. Redondo sem início e sem fim, eu sou o ponto antes do zero e do ponto final. Do zero ao infinito vou caminhando sem parar. Mas ao mesmo tempo tudo é tão fugaz. Eu sempre fui e imediatamente não era mais. O dia corre lá fora à toa e há abismos de silêncio em mim. A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma.?
A ideia da criação é, talvez, uma das ideias mais presentes em nossa sociedade ocidental, especialmente a partir do momento que o Cristianismo começa a se expandir na Europa no princípio da Idade Média. O clímax da obra criadora de Deus, na tradição judaico-cristã é o homem. Para que, do pó, o homem se tornasse um ser vivente - o maior de todos eles - foi necessário que Deus soprasse em suas narinas o fôlego da vida. Não somente em seu sentido religioso, também na própria literatura, o ato de criar é a teia central em que se sustenta esta forma de expressão da arte. Em ?Um sopro de Vida?, Clarice Lispector trata, também, da ação criadora a partir do momento em que o Autor, desconhecido no decorrer de todo o livro, cria a sua personagem Ângela Pralini, também escritora. O Autor dá à sua personagem o sopro de vida necessário para que ela passe também a ter uma existência inteiramente própria.
?Um sopro de Vida? não possui, em si, uma trama propriamente dita, pelo menos não em seu sentido tradicional com o desencadeamento de fatos descritos e de ações das personagens para a composição de um enredo. O que há nele é o monólogo livre das personagens Ângela Pralini e O Autor que jamais, porém, confluem em um diálogo. Ambos conversam, refletem, conduzem, em alguns momentos, diálogos que parecem desconexos e fundem-se no pensamento um do outro. É um embate introspectivo entre criador e criatura. O Autor constrói a personagem e com ela discorre, ao longo de toda a obra, diálogos apreensivos de auto reconhecimento, com sofisticadas notas de poesia em prosa. Os dois sustentam colóquios densos, profundos e irrequietos. Ora soam como aforismos, fragmentos isolados. Noutras situações parecem entraves tomados por uma filosofia existencial quase religiosa.
Em minha humilde e leiga opinião, Clarice Lispector é simplesmente a melhor autora da língua portuguesa que conheço. Seu teor existencialista submerge o leitor em profundidades reflexivas de forma quase que inalterável; Clarice é trajeto que deve ser percorrido novamente, pois o reencontro é sempre uma nova aprendizagem. Pelo menos é o que acontece comigo em quase todas as obras que li e reli. Clarice é leitura que não envelhece; que não segue direção específica, que escapa do mero vislumbre narrativo tradicional para mergulhar nas agruras introspectivas do ser humano... Sem jamais fazer julgamentos ou tomar partidos. Gesto sem fórmulas. Apenas o ato de fazer refletir, ela é autora que dedicou-se a transitar através do intricado e misterioso íntimo humano.
Através de sua literatura, Clarice coloca em risco o lugar comum do pensar. E se você ainda não é um caminhante do universo clariciano, vai aqui o meu único conselho: permita-se, humilde e despudoradamente. Exatamente como ela fez ao deixar seu legado literário: ?Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra. Vejo pouco, ouço quase nada. Mergulho enfim em mim até o nascedouro do espírito que me habita. Minha nascente é obscura. Estou escrevendo porque não sei o que fazer de mim. Quer dizer: não sei o que fazer com meu espírito. O corpo informa muito.?