Coisas de Mineira 13/03/2023
A conhecida mãe dos poetas, Noemia de Sousa, transformou suas dores, lutas, vivências em poesia e lutou por um reconhecimento através da poesia, em seu livro Sangue Negro.
Na resenha de hoje, sobre Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, gostaria de apresentar para vocês um livro que marcou não só a mim, mas muitas pessoas ao longo desses anos. Fico muito contente em ver, editoras como a Kapulana, dando espaço para as Literaturas Africanas se expandirem e ficarem cada vez mais conhecidas na sociedade.
Inclusive, um ponto que me chamou bastante atenção é que na capa tem “vozes da África”, onde a editora dá lugar para ilustradores, professores/pesquisadores e mais que estudam sobre África e querem da voz a essas literaturas. Por isso, fico muito feliz em ver obras assim. Espero poder falar e ver mais pessoas falando sobre essas literaturas em blogs, Skoob, tiktok e em várias mídias sociais, pois, elas transmitem um grande conhecimento e muitas emoções em sua composição.
46 POEMAS REUNIDOS EM SANGUE NEGRO QUE TOCAM A ALMA
O livro está no meu top três das literaturas que eu mais gostei de ter tido o contato. Uma escrita de mão cheia, um verdadeiro fenômeno para a literatura africana de língua portuguesa. Conhecida como a mãe dos poetas moçambicanos, Noemia de Souza, nos apresenta poemas de forma lírica e cheia de suas vivências, experiências com a poesia moçambicana.
Sangue Negro, da Noémia de Souza, nos leva a um mundo onde a colonização foi cruel com aqueles que ali habitavam. Espero que vocês estejam preparados para se depararem com uma escrita tão singela, tão significante e tão cheia de conhecimentos.
“Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara
sobre o branco e egoísmo dos homens
sobre a indiferença assassina de todos”
RESENHA DO LIVRO SANGUE NEGRO, DE NOÉMIA DE SOUSA
Sendo a única publicação da autora, a obra Sangue Negro apresenta 46 poemas que carregam consigo suas particularidades. Os mesmos foram escritos no período de 1948 e 1951. Durante a leitura das poesias, você pode notar que ao fim de cada poema, tem a data em que o mesmo foi escrito, o que pode ajudar o leitor a se situar do tempo em que a autora estava vivendo e o que acontecia naquele ano em seu estado/país.
De um modo geral, a obra carrega tantas questões profundas que tocam a alma do leitor. Gosto de como os poemas são estruturados, e da divisão deles que facilitam ainda mais no entendimento e no que a autora apresenta nas obras e em como todos aqueles anos de tortura vivendo a colonização mexeu com as pessoas que tiveram de enfrentar dia após dia. Além de apresentar a força de uma mulher africana, passando por todo o período colonial.
O livro é dividido em Prefácio, Nossa voz, Biografia, Munhuana, Livro de João, Sangue Negro, Dispersos. Vou tentar desenvolver algumas partes para ficar mais fácil o entendimento de como a obra da Noémia de Souza é abordada.
Sem mais delongas, gostaria de reforçar que os poemas na obra de Noémia de Souza reforçam e retratam o cotidiano de uma mulher preta, mas guerreira que viveu durante o período colonial.
“Nós somos aqueles que só na revoltam encontram refúgio
Que se deixam possuir, ébrios, pelo feitiço dos tambores, nos batuques nocturnos da vingança.”
POEMAS NOEMADOS NOSSA VOZ
Na primeira parte dos poemas, nos deparamos com o subtítulo “Nossa Voz” que fala realmente sobre essa luta que os colonizados tiveram, sobre resistência. Nesse capítulo, o poema que mais me tocou foi “Súplica”, me dói como a autora vai construindo o poema suplicando e pedindo que tirem tudo deles, mas que deixem a música. Pois, não importa o que aconteça, não importa para onde eles terão de ir, se estiverem com a música, ainda assim, eles viveriam.
Gosto muito desse, porque a autora brinca com as palavras e o leitor precisa ficar muito atento a forma e as referências que ele coloca no poema, não apenas no Súplica, mas em todos. Todavia, sua cabeça “explode” quando você entende a referência do tabuleiro de xadrez mencionada pela autora no poema.
Não só quando o poema foi discutido em sala, mas até mesmo durante a leitura, fiquei pensando em como a música naquele período colonial significou para as pessoas, e como pôde fazer com que eles passassem por muitos momentos. Agora, saindo um pouco do livro, mas a música sempre foi usada como um símbolo de resistência em várias épocas. Inclusive, posso trazer uma playlist com músicas de cantores africanos, caso queiram.
Enfim, de um modo geral, essa parte inicial do livro reforça muita o combate dos povos africanos. Ponto muito importante que ela sempre menciona um “nós” em sua obra, não há um individualismo como em muitas obras. Além dela reforçar uma identidade de quem eles são, isso você pode encontrar no poema “Passe”.
Sério, eu fico impressionado e encantado em como a Noémia foi uma escritora esplêndida e que merecia muito reconhecimento por sua obra que tanto transmite conhecimento.
“Tirem-nos tudo,
mas deixem-nos a música!”
POEMAS NOEMADOS BIOGRAFIA
Logo em seguida, seus poemas já tomam um ar diferente e seguem, de fato, o título, uma vez que eles começam a se referir a assuntos sobre a própria Noémia. O que é bom, pois, a partir daí, você já começa a ter um “contato” entre leitor e autor, com a escritora dos poemas.
Diferente da parte anterior, sinto que essa já carrega uma individualidade a partir do seu modo de ver o mundo, não só na infância, mas com o passar dos anos e como ela amadureceu. Apesar de ela mencionar sobre o seu povo, acredito que há, sim, uma forma de individualismo e falar de si próprio, afinal, essa parte se chama biografia.
Relatos da infância doem o coração, inclusive, acredito que seja interessante mencionar o “poema da infância distante”, pois, a autora começa narrando sobre o dia do seu nascimento e como parecia ser um dia de sol, um dia radiante, mas em algum momento seus olhos choram de revolta e o sol já não é mais o mesmo como nos anos de sua infância, entretanto, ela encerra o poema com a esperança de que um dia o sol iluminará novamente a vida, assim como iluminou na sua infância.
Entre muitas questões a serem pontuadas, uma que eu gosto bastante é em como ela gosta de brincar com as palavras, assim como a Conceição Lima. São palavras muito minimalista, que, por muitas das vezes acabam passando despercebidas pelo leitor, mas quando você observa com cuidado, é surreal ver que ela pensou em cada palavra.
“Sempre que eu recordo a casa à beira-mar da infância,
surgem-me teus olhos meigos de xipeia ferida,
aguados de humildade,
constante como um remorso”
MUNHUANA 1951
Mais adiante, temos alguns poemas selecionados que fazem menção a vários aspectos, mas eu gostaria de mencionar o Poema “Lição”, que apresenta lições sobre a colonização e um dos seus fortes que era colonizar as pessoas. Dessa forma, a construção do poema se da nessa missão divina, até um preto chamar um branco de irmão e ter que se deparar com aquela reação.
Os poemas, às vezes, são bem pesados, acredito que possam despertar gatilhos em muitas pessoas, mas eles são intensos também. O livro carrega consigo também o peso da Noémia ter sido a primeira mulher naquela época a publicar um livro, então, imagina quantos outros poemas não foram proibidos ou perdido, já que ele fala tanto sobre luta e resistência.
POEMAS LIVRO DE JOÃO
Por fim, gostaria de ressaltar que a obra da Noémia é muito boa. Suas obras deixam aquele aperto no coração. Assim como a Conceição Lima, em A Dolorosa Raiz Micondó, a escrita da Noémia é muito minimalista e cheia de referências de assuntos que você precisa entender a época em que o poema foi escrito, para, então, compreender aquele poema. Assim como as demais que já foram mencionadas, nessa obra, a esperança também está bem presente em muitos poemas
Não diferente das outras literaturas africanas, eu recomendo um bom dicionário ao lado do livro, porque muitas palavras que não estão no nosso cotidiano podem aparecer. Apesar de alguns poemas não ter a necessidade, a maioria necessita de um para facilitar a leitura.
“Por isso eu CREIO que um dia
o sol voltará a brilhar, calmo, sobre o Indico.
Gaivotas pairarão, brancas, doidas de azul
e os pescadores voltarão cantando,
navegando sobre a tarde ténue.”
SOBRE A AUTORA NOÉMIA DE SOUZA
Como já dito anteriormente, a mãe dos poetas moçambicanos, Noémia de Souza, nasceu no ano de 1926, em Moçambique, um dos países de língua portuguesa do continente Africano. A autora faleceu aos 76 anos de idade, em 2002, mas deixou um legado importantíssimo para a literatura moçambicana. No prefácio do livro temos algumas informações sobre a autora, o que nos ajuda bastante a entender como ela era, tanto que em um determinada momento fala que ela é mestiça, tanto por parte de pai, quanto por parte de sua mãe, isso, dito pela professora Carmen Lucia Tindó Secco. Lançou apenas um livro e nele consta 46 poemas, Sangue Negro é um misto de sentimentos que o leitor pode ter.
Por: Dalyson Oliveira
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