.Igor 05/06/2024
Esse texto foi escrito em 2016, mas esqueci completamente de colocar aqui no Skoob, pra variar. Depois de algumas edições, acho que ele ficou finalmente pronto pra vir para cá.
Kell Maresh é um Antari, um raro grupo de magos também conhecidos como Viajantes, e eles recebem esse nome por uma razão: são os únicos capazes de viajar entre os quatro universos paralelos, conectados por uma cidade em comum: Londres. Esses quatro universos foram formados pela magia, e, desde tempos imemoriais, ela existiu neles como uma força viva, até que uma tragédia aconteceu e todas as portas foram fechadas.
O ano é 1819, e Kell é um dos poucos que ainda se movem entre as Londres. Em suas viagens, ele acabou classificando as quatro cidades baseado em suas cores. A Londres Cinza, suja, enfadonha e sombria, perdeu sua magia quando as portas se fecharam, tornando-se um mundo de névoa e grandes indústrias, governada pelo rei George III. Na Londres Vermelha, a magia e a vida são reverenciadas por todos, um lugar rico e próspero, e onde Kell foi criado ao lado de Rhy Maresh, príncipe herdeiro do Império Maresh. A Londres Branca é um lugar selvagem, ainda que sofisticado, onde se luta constantemente pelo poder e para controlar a magia, e onde a magia reage, drenando a cidade até os ossos. E era uma vez a Londres Negra... Mas ninguém fala mais dela.
Oficialmente, Kell é o Viajante Vermelho, embaixador do Império Maresh e encarregado das correspondências mensais entre a realeza de cada Londres. Extraoficialmente, é um contrabandista atendendo a pessoas dispostas a pagar por mínimos vislumbres de um mundo que nunca verão. É um hobby desafiador e com consequências perigosas, as quais Kell agora conhecerá de perto. Forçado a fugir para a Londres Cinza, o mago esbarra em Delilah Bard, uma ladra com grandes aspirações. Primeiro, ela o assalta, depois o salva de um inimigo mortal, e então o obriga a levá-la para outro mundo, onde espera encontrar uma aventura de verdade. Mas em meio a tudo isso, uma magia antiga e perigosa está à solta, e para salvar todos os mundos, Kell e Lila precisam permanecer vivos.
Nunca deixa de ser incrível quando um novo universo literário é descoberto. Alguns autores centram suas obras todas em um universo e vão desenvolvendo-o aos poucos, como Asimov fez na ficção científica, com sua Fundação e seus Robôs, ou como Sanderson e seu Cosmere na ficção de fantasia. Outros criam microcosmos em um ou no máximo três livros, com um desenvolvimento que rivaliza as grandes sagas. V.E. Schwab se encaixa nessa última categoria: as quatro Londres que ela criou são de tamanha riqueza que frequentemente me peguei vagando por suas ruas enquanto acompanhava Kell.
A Londres Cinza e sem graça equivale à nossa realidade no século XIX. É um lugar comum, onde grande parte das pessoas sequer se lembra da magia, embora ainda haja alguns poucos que sentem que existe algo mais em seu mundo, algo que não pode ser explicado. A Londres Vermelha é exatamente o oposto: desde o Tâmisa rubro até as ruas sempre iluminadas por luzes multicoloridas, as pessoas dessa cidade sequer sabem o que é frio, uma vez que muitos podem simplesmente manipular o fogo para se aquecer; apesar disso tudo, tem algo mais em comum com sua irmã cinzenta, já que as desigualdades são uma constante, ainda que sejam entre aqueles com talento para magia e aqueles desprovidos de tal. A Londres Branca é algo surreal: um mundo branco, não como a neve, mas como ossos, sempre faminto: uma necessidade animalesca não de comida, mas de magia, o que tornou a cidade uma verdadeira selva branca onde todos lutam para controlar uma magia que vai, pouco a pouco, se esvaindo e levando o mundo (e a sanidade) consigo. A Londres Negra, bem, ela será uma surpresa para o caso de você ler o livro.
Um livro com magia depende muito da forma como ela é caracterizada. Ela pode ser posta de lado, ser apenas uma personagem secundária e insignificante, ou pode ser elevada à categoria de coadjuvante e ter maior impacto na trama. A Schwab mudou um pouco isso: a magia é a personagem principal na sua obra. Kell é um mago e exatamente por isso sabe que seu poder vem não do controle sobre a magia, mas de sua capacidade de cooperar com ela, agindo junto com ela como um companheiro e não como um mestre. Esse seu ponto de vista se deve principalmente ao fato dele ser um Antari, sua conexão com as forças que fazem parte dos universos é muito mais forte do que a das pessoas comuns.
"Alguns pensam que magia vem da mente, outros da alma, ou do coração, ou da vontade. Mas Kell sabia que ela vinha do sangue.
Sangue era a manifestação da magia. Nele ela vicejava. E nele, ela envenenava. Kell presenciou o que acontecia quando poder guerreava com o corpo, assistiu ele escurecer as veias de homens corrompidos, transformando seu sangue de vermelho para o negro. Se vermelho era a cor da magia em equilíbrio - da harmonia entre poder e humanidade -, então o negro era a cor da magia sem equilíbrio, sem ordem, sem limites.
Como um Antari, Kell era feito de ambos, equilíbrio e caos; o sangue em suas veias, como a Ilha da Londres Vermelha, corria com um cintilante, saudável vermelho, enquanto seu olho direito era da cor de tinta derramada, um negro reluzente."
A magia é temperamental: ela pode fazer o que pedem ou não, e quando a forçam de alguma forma, ela agirá, mas cobrará um preço alto depois. Quando magos e magia cooperam, há equilíbrio, mas quando um deles perde o controle, podem acontecer tragédias impensáveis. Há pouca coisa mais assustadora do que a magia insana no mundo de Kell.
Enquanto Kell está acostumado a transitar entre esses vários mundos diferentes, Delilah Bard é uma habitante da Londres Cinza, que nunca encontrara magia antes em sua vida. Ainda assim, ela não se assombra (tanto) quando encontra Kell, talvez por ser uma sobrevivente em uma cidade impiedosa, talvez por enxergar no mago uma possibilidade de sair dali e encontrar as aventuras que sempre buscou. Mas não se engane achando que Lila é uma mocinha sonhadora indefesa: ela é uma ladra astuciosa e violenta, uma assassina feita pelas circunstâncias difíceis de sua vida, que, embora tente esconder, tem um grande coração.
"- Você não tem medo de morrer? - perguntou Kell agora a Lila.
Ela olhou para ele como se aquela fosse uma pergunta estranha. E então fez que não com a cabeça.
- A morte chega para todos - disse ela simplesmente. - Não tenho medo de morrer. Mas tenho medo de morrer aqui. - Ela fez um gesto indicando o quarto, a taverna, a cidade. - Prefiro morrer numa aventura a viver sem ter feito nada."
A química que a autora criou entre esses dois personagens completamente diferentes é incrível e super divertida, especialmente nas inúmeras discussões entre os dois.
Creio que poderia falar mais sobre o enredo do livro, mas dessa vez há algo que me impede: "Um Tom Mais Escuro de Magia" é o primeiro livro de uma trilogia, e como vocês provavelmente sabem, não dá pra falar corretamente de uma trilogia usando apenas um livro, ainda mais quando uma segunda trilogia foi iniciada recentemente. Então, com essa desculpa bem elaborada (modéstia à parte), encerrarei esse texto com apenas algumas micro considerações.
Li sobre A Darker Shade of Magic pela primeira vez alguns meses antes de seu lançamento, ainda em 2014, no blog da editora Tor, e fiquei extremamente curioso para saber mais sobre as quatro Londres de Kell. Quando finalmente saiu a edição em português foi uma compra quase instantânea quando vi o livro dando sopa na livraria. A autora já escreveu os dois livros seguintes da série, lançados no Brasil e tudo, caso se interesse, seus títulos são Um Encontro de Sombras e Uma Conjuração de Luz, leia eles também!