spoiler visualizarSandman 06/06/2019
Lindo e Falho como a vida.
A obra abre de uma forma marcante e crua ao mesmo tempo, temos a nossa protagonista, uma menina aparentemente ordinária e normal, sendo atropelada e morta de uma hora para outra, enquanto acompanhamos uma narração melancólica e intimista de seus pensamentos e sentimentos diante dessa situação tão cruel, tudo acompanhado de referências musicais ao rock indie que acrescentam à ambientação da história. Um bom começo que carrega muito do que veremos e sentiremos ao longo da leitura.
É dessa forma que somos introduzidos ao clima e a temática principal do livro: a morte e como Lorena, nossa heroína, enfrentará sua nova condição nesse novo mundo com seus novos amigos e aliados.
O enredo é marcado fortemente com um ambiente único que mistura o estranho ao mundano, o Mundo Espiritual que vamos desbravando junto de Lorena é, surpreendentemente, muito sanitizado e de certa forma bastante burocrático. Vemos ao longo da história vários personagens que desempenham cargos e funções que englobam um sistema maior que gere essa realidade, como fiscais, cargos de ceifadores, bruxas armadas com licenças e médiuns com repúblicas para criaturas fantásticas, tendo que lidar com checagens e relatórios, além de flertar com o cotidiano, na forma de um restaurante que secretamente serve esses seres.
Esse aspecto sistemático traz um charme a mais para o Mundo Espiritual e nos ficar interessados pelo o que mais ele pode nos apresentar, porém, a história perde uma oportunidade grande em aprofundar mais nesses elementos, tanto nos oficiais a serviço do Mais-Além quanto nas localidades especiais, todos acabam perdendo seu brilho por causa dessa falta de desenvolvimento.
O único conceito que regia o mundo que me incomodou de verdade são os Caçadores, seres muito selvagens e mercenários demais para que se encaixassem no que fora construído antes, além de possuírem uma presença tão minúscula que podem ser considerados mais como ferramentas do roteiro do que habitantes daquela existência.
As criaturas que dão título à obra não são necessariamente originais, mas carregam um traço autoral bem forte, revisando e até nos dando uma nova perspectiva de monstros do folclore/cultura pop, se enquadrando com perfeição ao clima fúnebre tido como comum por eles e mostrando uma real preocupação em explicar como aquelas raças funcionam e que regras recaem sobre elas. Meu alento cai mais em cima, de novo, da raça dos Caçadores e dos Lobisomens, que parecem estarem desconexos com as questões de morte, imortalidade e corrupção que o restante da galeria de desmortos apresenta, além de serem os mais mal desenvolvidos de todos.
Os personagens são ótimos em sua maioria, são carismáticos, de personalidade bem demarcada e muito divertidos. O ponto mais forte deles, de longe, são suas individualidades e relações uns com os outros, mesmo que muitas demorem para engatar ou são interrompidas e retomadas mais à frente, isso não estraga o resultado como um todo, e ainda é muito prazeroso observar os laços de respeito e amizade entre o grupo principal. Os personagens principais têm uma dinâmica maravilhosa, sua relação começa evoluindo ao poucos até atingir o estágio máximo de romance, tudo feito de forma muito orgânica e natural, fazendo valer a verossimilhança e tornando crível todo o processo de amadurecimento, tanto como indivíduos quanto como casal; talvez o elo mais fraco dessa aliança seja justamente a Lorena, que não possui nenhuma cena de interação direta com a sua família e nem muito menos um passado triste e fustigado, isso pode acabar refletindo na perda de um pouco do impacto da personagem, já que não a conhecemos direito quando ela toma a sua primeira grande atitude irresponsável na história e nem nos é realmente justificado o motivo da mesma agir tão tetricamente no prólogo.
Mas se os principais são incríveis e dignos de nota, o mesmo não pode ser falado dos secundários. Como dito anteriormente, eles ganham um enorme peso por conta de suas personalidades e interações, mas no campo geral, a maioria não possui um arco dramático muito marcante (Tommy e Nina) ou não se conecta direito com o restante da narrativa (Felipe); salvo contudo o personagem do Sonny, de começo ele pode não aparentar nada de mais, mas ganha uma série de reflexões interessantes que influenciam no Lucas e na Lorena de uma forma bem interessante. O restante dos personagens que integram o núcleo de oficiais são desinteressantes e muito mal desenvolvidos, uma pena, alguns tinham realmente um maior potencial para poder ter feito mais.
Falando da história no escopo geral, ela apresenta um clima consistente e uma narrativa que pega no lado mais emotivo e intimista possível dos personagens, a prosa é bem escrita e muito boa de se ler, mas acho que o ritmo é um fator que acabou sendo prejudicado como um todo. A obra é dividida em três partes, a primeira é caracterizada por ter um passo mais rápido e emocionante, os acontecimentos são desenrolados através de uma série de consequências da atitude dos protagonistas que os seguem até culminar no primeiro, senão o único, grande evento da jornada deles. As duas partes restantes, porém, perdem esse fator e incorporam um ritmo mais lento, eficiente para introduzir o novo elenco e desenvolver a relação romântica de nosso par, mas os grandes acontecimentos sequenciais desaparecem, além da escala de tensão quase inexistir no restante da história, focando mais no drama e complicações dos personagens.
Não que não seja bonito ver Lucas “superar” o seu medo de palco e tocar ao vivo para uma platéia, houve uma construção para isso, mas devo admitir que é bem menos emocionante que lutar contra uma quimera em um coliseu no Limbo e depois fugir da dimensão. Não há escalonamento da urgência e do perigo, depois da grande fuga, nunca mais tememos pela integridade dos mocinhos. Mas mesmo com essa discrepância com relação ao início da história, o restante ainda se mantêm muito coerente com o que se propõe, principalmente em relação com a grande revelação, mascarada primeiramente como algo simplório e previsível, um clichê do gênero, apenas para nos presentear com a verdadeira grande resposta ao mistério, que conecta tudo de forma que nos faz olhar com outros olhos para interações e ocorridos passados.
Desmortos é uma obra conflitante em muitos de seus aspectos, apresenta um incrível mundo especial, mas não se aprofunda nele; ostenta diversos personagens carismáticos e com ótimas falas e momentos, só que muitas vezes rasos e mal desenvolvidos; nos integra em um primeiro ato rápido e com consequências diretas, mas desacelera no restante da narrativa e praticamente mata a tensão e perigo. Mas, acima de tudo, ainda é uma leitura muito boa de ser feita, muito prazerosa e bem divertida, com momentos que arrepiar e de se sensibilizar. Nunca achei que a morte pudesse ter tão fascinante e triste ao mesmo tempo.
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