brunossgodinho 08/12/2021O
Satyricon é uma história esquisita. Primeiro porque, como gênero, está absolutamente deslocado no nosso mundo. Na melhor das hipóteses, somos acostumados com os gêneros poéticos (não chamo de literários e explico abaixo) da Idade Média, época em que surgiu o romance como estrutura narrativa com a qual estamos familiarizados. Além disso, não temos o
Satyricon por completo, mas entrecortado.
Dito isso, é difícil aproveitar razoavelmente essa narrativa quando não se está propriamente de posse de conhecimento do mundo antigo. São muitas as coisas que acontecem, de maneira que parece absolutamente arbitrária, mas elas têm (acredite) uma razão. Essa razão está fundada num mundo que não existe mais e, portanto, o qual não podemos compreender muito bem. Nesse mundo antigo, não existia aquilo que chamamos de "literatura" hoje, quer dizer, um espaço social e socialmente construído para pessoas que vivem de uma atividade artística que resulta na produção de objetos que serão transformados em mercadoria e, ao mesmo tempo, valorizados por suas qualidades de mercadoria e de obra de arte. A "literatura" do nosso tempo está irrevogavelmente ligada ao modo de produção capitalista. A "literatura" da época do
Satyricon não o estava e, por isso, só falo em "literatura" entre aspas ou prefiro falar de gêneros poéticos (não de poesia, ou seja, discurso em versos, mas do grego
poiesis — atividade de criação, elaboração, composição).
Mutilada pelas perdas ocasionadas pelo passar do tempo (seja em conteúdo, seja em qualidades poéticas), essa edição do
Satyricon, infelizmente, ainda padece de descuidos editoriais. Uma das coisas que chama atenção é a ausência de revisão das notas da tradutora relativas ao texto. Há desencontros entre as indicações e o texto que dificultam a compreensão dos comentários, o que é um evidente contrassenso ao propósito de notas explicativas.
Em última instância, penso que ainda há mérito na edição, especialmente por nos proporcionar a oportunidade da leitura bilíngue (ainda que, claro, o latim seja uma língua de poucos leitores no Brasil). Seria o caso de uma segunda edição, revisada em todos os aspectos possíveis e, quem sabe, com um ensaio introdutório mais atual, voltado à explicação das convenções artísticas das letras do mundo antigo.