Jacqueline 25/07/2015
Brincando de ser Deus
O livro gira em torno de dois dilemas éticos. Em um primeiro plano, temos a contraposição entre a racionalidade e a religião: o protagonista Adam Henry, um garoto de 17 anos, influenciado pela família e pela Igreja, se recusa, por motivos religiosos, a receber uma transfusão de sangue que pode lhe salvar. Fiona, especialista em direito de família, é a juíza encarregada de garantir o bem-estar (um conceito pantanoso, diga-se de passagem) do menor: sua missão não era salvá-lo, mas decidir o que seria o razoável e legal.
[Outro caso citado no livro dá mostra dos dilemas enfrentados pela juíza: um judeu ortodoxo
se separa da mulher quando (e porque) essa não pode mais ter filhos e exige a guarda das outras filhas que quer criar dentro do mais alto grau de ortodoxia, o que inclui estudar em escola só de meninas e somente até os 17 anos, ser uma mulher devotada aos lar que não trabalhar fora e é totalmente subserviente ao marido. A ex- mulher requere o direito de criar as filhas dentro de preceitos judaicos menos fechados, que inclui escola mista, acesso a internet, possibilidade de cursar uma Universidade, de ter uma profissão, dentre outros. Frente ao impulso inevitável que qualquer ser humano defensor do Estado de direitos e capaz de exercício mínimo de racionalidade teria - dar o ganho de causa para a mãe – é preciso colocar uma pergunta: quem pode dizer que não se pode ser mais feliz no seio de uma comunidade ortodoxa? A questão, portanto, deve ser guiada por outra lógica: pai e mãe têm direito: dar a guarda para a mãe tem mais chance de possibilitar a convivência com ambos, enquanto o contrário parece menos provável. Ufa!]
No caso de Adam estavam, então, de um lado, “aqueles não apenas convencidos da existência de Deus, mas de conhecerem sua vontade” (seres muito especiais, com certeza!) e, de outro, médicos empenhados em salvar um paciente. No meio, uma juíza que decide quem vai viver. Não é muita gente se outorgando o lugar de Deus?
O outro dilema ético vivido relaciona-se com a própria vida pessoal da juíza. O pano de fundo da história é dado pela crise conjugal vivida pela juíza: no início da história, seu marido anuncia um caso extraconjugal com uma mulher mais jovem e sai de casa, trazendo à tona, para além da raiva habitual, uma sensação de fracasso frente às escolhas feitas, dentre essas a de não ter filhos (o que confere outros sentidos à sua escolha de área dentro do Direito), de ter se dedicado demais ao trabalho e talvez menos do que deveria ao casamento. Demonstrando uma dose extra de dificuldade de lidar com suas emoções, a juíza, aos 60 anos, se afunda no trabalho, enquanto tenta lidar com sua iminente separação e com as agruras (que é só o que consegue enxergar dada a situação) de envelhecer. A fragilidade emocional da juíza ajuda a fazer com que o caso de Adam saia da esfera profissional e invada sua vida pessoal.
O livro vale pelas instigantes reflexões que propicia distinguindo lei, moral e ética e pelo jogo complementar da maturidade contraposto com a juventude tratado por uma ótica nem sempre habitual: mais do que a busca pelo elixir da juventude ou de poder viver o que não foi possível viver, se coloca a sedutora armadilha narcísica de nos colocarmos como a possibilidade de redenção do outro ou no mínimo sua melhor opção (o que não quer dizer que relações amorosas entre pessoas com grande diferença de idade sejam fadadas ao fracasso, mas somente que precisam se livrar desse jogo de projeções e medo de frustrar o outro, sob o risco de uma alteridade mínima desejável não poder vir a ter lugar).