Betinha 13/09/2013Do sim para o não, da aceitação para a negação, assim começa esse romance de José Saramago.
Raimundo Silva é um revisor que está trabalhando nos manuscritos da História do Cerco de Lisboa, ocorrido no século XII. Na ocasião, o autoproclamado rei Afonso Henriques levou suas tropas aos portões de Lisboa, que vinha sendo ocupada pelos mouros desde a invasão muçulmana à Península Ibérica, no século VIII. Tentou o rei tomar a cidade, mas falhou e, tendo os cruzados de passagem pela região, convidou-os a integrarem as forças cristãs para retomarem a cidade.
Nesse ponto, Raimundo entra em conflito. Por que os cruzados teriam dito SIM, conforme escrito no manuscrito que analisava, no lugar de NÃO, que parecia mais apropriado? O que teria acontecido se os cruzados não tivessem integrado as forças cristãs para a retomada de Lisboa? Decide remendar a história, trocar o sim conhecido pelo não que daria outro tom à narrativa, colocando em jogo o seu emprego e a sua reputação. Contudo, antes de qualquer consequência pessoal oriunda de sua interferência, Raimundo deixa mal contado o episódio que viria a ser fundamental para a fundação do Reino de Portugal.
Raimundo começa a perceber o quão artificial, banal e frugal é sua vida, destituída dos temperos dos quais os outros desfrutam. Então surge Maria Sara, a chefe dos revisores, aquela que lida com a ousadia do revisor, que disse NÃO ao rei Afonso Henriques como se cruzado fosse e o desenrolar das consequências dessa imprudência profissional incluem um pedido de Maria Sara: Raimundo deveria reescrever a história do cerco de Lisboa como se os cruzados realmente tivessem negado o convite do rei.
Demorei muito para concluir esse romance, entre abandonos e retomadas. Essa não é uma história fácil, primeiro porque é um denso romance histórico com a peculiar narrativa saramaguiana, depois porque as idas e vindas entre os dois cortes temporais – o atual de Raimundo e o histórico da tomada de Lisboa – acabam por se fundir de tal modo que em algumas passagens fala-se de Raimundo e do cerco sem intersecções aparentes.
O entusiasmo desperto pela leitura não foi tanto pela história de Raimundo e Maria Sara, muito menos encantadora do Blimunda e Baltazar, de Memorial de Convento. O encanto fica por conta das divagações de Saramago, aquelas deliciosas frases de crítica à religião, aos costumes do homem e outras de cunho linguístico.
"Mais do que degradação sofrida de fora, é renúncia vinda de dentro." (p. 160) – sobre o cão que passava fome nas Escadarias de São Crispim e que Raimundo eventualmente alimentava.
"Não são só as pessoas que não sabem para o que nascem" (p. 172) – sobre a beleza das flores.
"A formosas atitudes como esta costumávamos chamar de caridade cristã, o que uma vez mais vem demonstrar quanto as palavras andam ideologicamente desorientadas." (p. 177)
"Por uma serenidade tão admirável perante a previsível morte, que, sendo sempre certa, se torna por assim dizer fatal ao vir com figura de provável, parece uma contradição, porém basta pensar um pouco." (p. 205)
"Para falar, como para matar, é preciso chegar perto" (p. 228)
"(...) deveremos nós resistir à tentação de, levados pelo hábito, chamar maquiavélico, pois Maquiavel, a esse tempo, ainda não era nascido e nenhum dos seus antepassados, contemporâneos ou anteriores à tomada de Lisboa, se havia distinguido internacionalmente na arte de enganar." (p. 279)
"O exército não terá de avisar as famílias por telegrama, No cumprimento do seu dever caiu no campo de honra, maneira sem dúvida mais elegante que explicar mui por claro, Morreu com a cabeça esmagada por uma pedra que um filho da puta de um mouro atirou lá de cima." (p. 284)
"(...) não há outra maneira, que a tropa tem a soldada paga até agosto e dará o corpo ao manifesto, dia por dia, até ao fim do prazo, salvo impedimento resultante de se ter cumprido com anterioridade um outro prazo, o da vida" (p. 290)
"(...) o bicho dava a ideia de estar sempre a morrer de fome, não sei o que lhe aconteceu, se lhe veio a coragem de ir correr mundo e buscar a vida, ou se rebentou aqui mesmo, à míngua." (p. 303) – ainda sobre o cão faminto.