Gabriel 19/10/2021
O Cão Negro é uma novela fix-up, modalidade de publicação de contos que foram previamente escritos de forma separada, mas então reunidos e reeditados para se tornarem partes de um todo para a coesão da obra. Os contos em questão foram escritos e preparados ao longo de seis anos, entre 2012 e 2018, pelo baiano Alec Silva e publicados pela Cartola Editora no ano de 2019. Em 2020, o livro chegou às semifinais do III Prêmio da Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST).
Escritor e editor dos gêneros terror, horror, fantasia e ficção científica, Alec é um dos fundadores do movimento literário Sertãopunk, que visa a construção de narrativas ficcionais futuristas e genuinamente plural como o Nordeste é e que surge em 2018 em contraponto ao Cyberagreste, que, por sua vez, apresenta visões estereotipadas e geradas de fora da região da qual se apropriam em suas narrativas. Atualmente, concorre como finalista ao III Prêmio ARBEST nas categorias Narrativa Longa de Terror (A livusia) e Narrativa Curta de Terror (A Coisa de Três Faces).
Nos últimos tempos de Inquisição na Europa, o espírito criado pela fúria e pela dor de uma jovem acusada de bruxaria tem como único objetivo perseguir e enlouquecer os descendentes do rapaz que começara com tudo aquilo. O Cão Negro será capaz das maiores atrocidades para alcançar seu objetivo, que se torna cada vez mais claro enquanto avançamos através dos contos, dispostos de forma não-cronológica, instigando-nos a montar esse quebra-cabeças peça por peça.
Em “O amuleto”, uma narrativa em terceira pessoa de poucas páginas, é introduzido o tom sombrio e permeado de uma magia ancestral que acompanha cada história da obra. Um homem, à procura proteção para a filha, aceita um amuleto de uma cigana misteriosa, que demonstra saber mais do que diz sobre o destino que se aproxima. O gatilho é disparado para que o virar de páginas seja viciante e surpreendente.
Logo em seguida, adentra-se a atmosfera sombria e pessimista em primeira pessoa que apresenta loucura e o desespero de um homem que tenta, desde tenra idade, fugir da figura espectral da criatura cuja figura podemos vislumbrar pela primeira vez no conto “O Cão Negro”.
“A lenda do lobo urbano” é o primeiro dos contos que se passa no Brasil. Nele, uma série de assassinatos brutais chama a atenção da mídia nacional para uma cidadezinha interiorana quando os acontecimentos inegavelmente sobrenaturais ou ocultistas culminam na exumação de túmulos no cemitério. Esse foi um dos contos que mais me arrepiou, me fez sentir vulnerável, como se algo espreitasse fora de casa durante a noite. Gostei de sentir esse medo.
“O cão e o homem” é narrado em primeira pessoa numa espécie de relato de relato. Nele, enquanto espera a chegada de seu ônibus, um homem é abordado por um bêbado que lhe conta a história de quando era marinheiro e o navio em que trabalhava servira de palco de uma sangrenta maldição, com uma tempestade que se acercou da embarcação e uma figura canina que perseguia um passageiro, não se contentando apenas com ele.
“A sombra do cão” é uma narrativa em terceira pessoa que acompanha um fazendeiro do interior baiano, marcado pela perda desde a do pai à da primeira esposa, em retorno à casa após uma viagem. Logo que ele chega, uma tempestade ameaçadora cai sobre a região, bem como a figura fantasmagórica que acompanha sua família. E o pior de tudo é que sua filha mais velha está desprotegida, passeando pelo pasto.
Ainda em terceira pessoa, em “O menino lobo” acompanha-se a mente singular de um órfão que se sente mais conectado aos cães do que a pessoas, a quem chega a desprezar. Conforme cresce, uma fúria animalesca torna-se cada vez mais pujante dentro de si, uma sede de sangue a qual ele descobrirá ser originada de uma existência bem mais poderosa e cruel quanto a sua.
Em “O lunático”, as peças da narrativa começam a formar quase por completo o panorama geral. Nele, a investigadora policial Paula se depara com um crime que começa a lhe trazer lembranças que ela não viveu, lembranças terríveis e dolorosas, além da figura negra e canina que, apesar de tudo, lhe parece protetora.
Em “A bruxa e a fera”, mostra-se o início do evento cruel que levou ao surgimento do espírito que vaga vingativo pela terra. Neste conto, há uma clara denúncia às barbáries cometidas pela Igreja Católica às mulheres, principalmente àquelas que decidiam não viver de acordo com os preceitos da instituição.
No conto final, “O horror alvo”, uma perspectiva completamente diferente das anteriores é apresentada. Nele, um diferente espírito, também originado da brutalidade, procura a vingança por uma moça que, apesar de viver séculos depois da Inquisição, foi tão oprimida e violentada quanto bruxas que arderam em fogueiras. O mundo, ainda hoje, não é gentil para com as mulheres.
Apesar de as narrativas acompanharem diferentes pontos de vistas, situados em diversos pontos geográficos e momentos do tempo, todas são construídas ao redor de um elemento em comum: a figura fantasmagórica e vingativa do Cão Negro, que é baseado em lendas de origens que vêm de diferentes culturas, mas que conservam em comum a noção de que tal criatura é mau agouro.
A versão desse símbolo construído por Alec Silva constitui uma figura coerente e forte, uma criatura monstruosa cujos objetivos e razões para existir são plausíveis. Não surge simplesmente como um algoz, como um perseguidor implacável e puramente sádico, mas como a reparação de um crime centenário e que, portanto, deve também levar séculos para a sede por sangue e justiça seja saciada.
Com um ritmo envolvente e principalmente descritivo, com direito a momentos avassaladores, e de estilo narrativo coeso e apesar das diferentes vozes empregadas para a composição do todo, a obra é, com certeza, um dos melhores representantes nacionais do gênero, pois não se utiliza de violência gratuita, para causar o choque pelo choque, mas baseada numa reação a um problema cruel que permeia nossa sociedade até hoje.
E não há terror mais interessante senão o que se apropria da realidade para que, além de nos causar medo e repulsa, nos faça pensar sobre a sociedade e em como fazemos com que seus padrões inumanos se reproduzam. Afinal, qual medida de violência é justificável quando aplicada a certos indivíduos, mas impensada quando voltada aos principais atores dessas atrocidades?