carlosmanoelt 20/05/2024
?Ser o que se pode é a felicidade.?
?Todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós.?
Valter Hugo Mãe é um dos romancistas mais prestigiados da atualidade. José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, referiu-se ao autor como um tsunami linguístico. De fato, a escrita de Mãe explora com maestria toda a potencialidade e beleza da língua portuguesa. Um rebento de palavras, uma obra que abarca a estética da prosa lusitana do século XX, que se revela em prosa poética, com elementos de leveza, em romance que nomeamos de polifônico. Sem deixar de lado questões sócio-políticas emergentes, tal livro pensa que quando se sonha, a realidade aprende.
Com uma prosa poética dividida em vinte contos que se entrelaçam numa história comum. O enredo de ?O Filho de Mil Homens? perpassa numa vila litorânea fictícia, de modo que o romance emana um tom enlevo de locus amoenus (do latim: ?lugar ameno?). Nela, o pescador Crisóstomo, a enjeitada Isaura, o órfão Camilo e o delicado Antonino engatam suas trajetórias pessoais com lirismo e introspecção. A cadência da narrativa sensível de Mãe conduz o leitor para um mergulho profundo no âmago de cada personagem.
Crisóstomo é um homem que era só metade. Um pescador solitário que, chegando aos quarenta anos, assume a tristeza de sua vida e procura ser completo através de um filho. E o faz, portanto, porque deseja ser amado. De acordo com Sartre, ?aquele que ama só ama esperando a reciprocidade. As relações com o outro só existem porque quem ama dá ao outro o sentido de existência absoluto?. O personagem empenha uma busca pelo amor que é intrínseca à natureza humana. Sob essa ótica, a procura de Crisóstomo o leva ao menino Camilo, órfão de uma anã que encontra no velho pescador um refúgio e uma família.
Durante os capítulos de abertura, os personagens encontram-se imersos num estado de desmedida melancolia. Em contraste com a angústia da solidão e do abismo existencial, destaca-se a sutileza da paisagem lúdica descrita por Mãe, em especial da casa de paredes azuis de Crisóstomo que se confunde com as cores do mar salgado. No interior do vilarejo, a jovem Isaura vive reclusa com sua mãe idosa. Desvirginada e abandonada pelo noivo antes do casamento, a personagem passará a enxergar o amor como uma fome bruta e sem prazer.
Isaura, tal qual a icônica Macabéa de Clarice Lispector, necessita e anseia pela conexão com outro (e, por conseguinte, com o mundo) para não perder-se em si. Todavia, já não poderia ser aceita por um pretendente, pois não era mais casta, de maneira que, para ela, só restava o amor dos infelizes. Essa crença a faz aceitar casar-se com Antonino, um homossexual que sofria com o escárnio da comunidade e pretendia, através de um casamento de aparências, manter-se dentro dos padrões conservadores da vila. O homem maricas, que padecia de paixões pelo seu sexo, havia sentido na pele que ?à beleza dos homens correspondia a fúria, a bestial crueldade?. Após a cerimônia, contudo, Antonino desaparece e a moça experimenta novamente o abandono.
O afeto, na obra de Mãe, é uma inesgotável fonte de energia psíquica, aquela que permite dar sentido ao caminho individual de cada personagem, que por si só não o faz, mas o constrói na interação com o outro. O romance imprime ao leitor uma catarse, ao transformar a desolação em regozijo e afeto. O amor dos infelizes triunfa deixando o sentimento de esperança. Assim, a sensibilidade e a genialidade poética de Mãe nos presenteiam com uma das obras mais brilhantemente humanas da literatura contemporânea.