Vanessa1409 28/10/2023
Elegante além da conta.
Linguagem coloquial, porém, elegante, sem gírias. A narração se altera, ora em primeira pessoa, pela perspectiva de Darian, ora em terceira pessoa, relatada por um narrador não tão observador, pois nota-se que está presente na história. O problema é que não há um aviso, a narrativa muda de repente, como no final da página 46 até a metade da 47, onde a narração seguia em terceira pessoa desde o início do capítulo, e muda de um parágrafo para outro, voltando a ser contado por Darian. Sem um espaçamento, sem nada... Um espaçamento seria como um alerta à mente do leitor, indicando que algo vai acontecer, seja alteração de cena ou, no caso, de narrativa. Jogarei a culpa disso nos ombros da equipe editorial; um trabalho em conjunto ? revisão e diagramação ? sanaria o problema. Afinal, a função da autora é criar uma história e escrevê-la.
Ainda sobre a narrativa, em algumas partes, a escrita pula do passado para o presente. Opinião pessoal: todo o texto em um único tempo ficaria mais envolvente e menos confuso. Não gosto quando o tempo se altera na narrativa.
No prólogo, o reino de Lúcifer é descrito com Cérbero, o cão de três cabeças, e Iblis, criatura de fogo, como guardiões do portão do inferno, uma mistura de literatura cristã, grega e muçulmana, já que Iblis é citado no Alcorão ii, 34. A autora poderia ter explorado melhor essas informações ou sincretizado ambas, fato que, infelizmente, não aconteceu.
O primeiro capítulo é totalmente narrativo, sem diálogos. Porém, para quem gosta do tema, não se torna cansativo. Até porque a escrita da autora ajuda. O texto é interessante e atrativo, com palavras bem colocadas, frases construídas com elegância.
No capítulo 15, o personagem cita Londres como uma das cidades mais antigas do mundo. Bem, Londres não chega nem no top 15 dessa lista, que é encabeçada por Jericó e seguida por tantas outras, como Atenas, Cairo, Beirute, Jerusalém, Argos, Sídon, Xian, Aleppo... A lista é longa, e Londres, bem distante para ganhar destaque. A autora coloca os anjos com escolha de gênero quando se materializam. Ou seja, enquanto alados, são criaturas sem gênero. Não sei até que ponto aceito esse mito, mas respeito a criação de Mallerey. O fato é que desconhecemos a verdade sobre o assunto ? se é que anjos existem, eu gosto de acreditar que sim. ? Levando em conta que o cristianismo foi construído sobre uma base machista e misógina, é bem possível que ela esteja certa em sua concepção. Em certos pontos, o enredo é imaturo ? ou sucinto demais ?, como se faltasse algo. Talvez, tenha sido podado para caber dentro de uma edição "enxuta", tornando a obra mais barata, pois o selo editorial em questão pertence à Novo Século, uma editora comercial para os importados e prestadora de serviços para os nacionais. Ou seja, os brasileiros pagam um valor exorbitante por uma publicação que, se fosse independente, custaria quatro vezes menos, para bancar todo marketing dos estrangeiros. Fato! Voltando ao que interessa...
Não há separação entre as cenas. Em um momento é noite, Darian tenta dormir depois de um pesadelo. Na linha seguinte é dia, e sua irmãzinha, Margot, grita e pula na sua cama. Não que não seja compreensível, porém, o espaço de uma linha, separando uma cena da outra, daria mais leveza à leitura.
Os pensamentos são destacados em itálico, mas não estão entre aspas, como normalmente acontece, e sim precedidos de travessões. Ficou um tanto esquisito e, de certa forma, confundiria o leitor, se a "esquisitice" não fosse salva pelos seguimentos de fala na narrativa ? pensei nisso, imaginei aqui, etc.
No capítulo que conta a história de Margot, mesmo Darian sendo mais velho, a narração é em terceira pessoa. Já no capítulo sobre Erick, quando Darian era apenas uma criança, a narrativa muda para primeira pessoa. Erick tinha apenas 5 anos quando a história da sua chegada foi contada. Suas falas são articuladas demais para uma criança dessa idade. Ainda que o enredo se passe em uma época antiga, um menino sem o mesmo acesso à educação que Darian tinha jamais conseguiria se expressar dessa forma. Não estou criticando a autora, sua escrita é primorosa, elegante. Porém, para torná-la verossímil, ainda que em trama sobrenatural, o artifício de adequar a fala do garoto à sua idade daria um glamour experiente ao texto. Infelizmente, a autora se prendeu no politicamente correto e deixou a verossimilhança de lado.
Em alguns capítulos, podemos notar a paixão de Mallerey não apenas pela literatura, mas, também, pelo seu enredo. As palavras denotam esse fascínio, juntando-se em frases deleitosamente acuidosas, arrebatando-nos ao mundo de Darian sem pejo algum.
Capítulo 8 = simplesmente o melhor! No quesito "deleite literário", o mais bem escrito, narrado com maestria.
Preciso enfatizar três pontos aqui:
1. quando Darian está no mundo humano, materializado, sua espada se transforma em sobretudo negro. E quando ele volta à sua forma espiritual, a lâmina ressurge em suas mãos (lembrando a caneta/espada de Percy Jackson);
2. Não foi explicado por que Darian foi acusado de roubar a caixa das almas no Caos, já que qualquer um seria identificado assim que chegasse perto, exceto os querubins e os potestades guardiões, apenas Darian passaria despercebido. O motivo? Ninguém sabe (assim como em Percy Jackson, acusado de roubar o raio de Zeus);
3. A barganha de Iblis foi com a mãe de Darian em troca de dez mil almas (Hades também barganhou a alma da mãe de... Percy Jackson).
Não estou dizendo que é um plágio, até porque a série de Rick Riordan é leve e divertida, escrita especialmente para crianças e adolescentes, ao contrário da obra de Mallerey Cálgara, que tem personagens jovens, porém, com atitudes maduras e um texto sombrio. Contudo, fica nítida a inspiração da autora ? não posso julgá-la, pois sou fã de Riordan... muito fã! ? Finalizando essa parte, há pontos perigosos na escrita, e não posso deixar de abordá-los. Veja bem... eu mesma já cometi esses erros. Porém, após uma boa revisão, mudei os termos e consegui sanar esses lapsos, tornando minha escrita mais limpa e nada ofensiva. Do que se trata? Eis os pontos de Mallerey:
? Magia negra, nuvens negras, anjo negro... tudo que é escuro, para a autora, parece ter sinônimo de coisa ruim, isso denota racismo estrutural;
? Prostitutas citadas como mulheres de vida fácil, como se vender sexualmente ? ou de qualquer outra forma ? o próprio corpo fosse uma atitude fácil. Nenhuma mulher chega nesse ponto porque quer, e sim porque se viu sem opções. E se ela quis, o problema é dela, foi por vontade, e não por facilidade. Isso é uma alusão ao machismo ? também estrutural;
NOTA FINAL: a obra é muito boa, e o texto, excelente, muito bem escrito. O problema é que ficou algo no ar, aquela coisa que nos instiga a querer mais, a saber mais. Pesquisei sobre as publicações da autora e não encontrei nada que remeta à continuação desse enredo. Portanto, não sei dizer se Anjo Negro é o início de uma série ou apenas um título único, e também não há nenhuma informação do tipo no livro, infelizmente. Espero que Mallerey conclua o que ficou no ar. Caso o faça, ganhará uma leitora certa, pois fiquei bem instigada em conhecer o desfecho da trama. Então, se você é como eu, que anseia por um final plausível, não leia, porque a raiva e a ansiedade vão te consumir. Porém, se você gosta de se aventurar na literatura sobrenatural, com cenários incríveis e em uma jornada astral e sombria, caia de cabeça e se delicie com Anjo Negro, pois não vai se arrepender! E prepare o bloco de notas, porque as teorias que criamos são tudo de bom. Aliás, eis um talento de Mallerey Cálgara, colocar o leitor para pensar. Espero muito conhecer seus outros escritos.