Lucas1429 19/04/2022
A epifania da Natureza
Em seu discurso indireto, Clarice conclama teu alter ego narrador para vislumbramos Lóri e sua busca pelo sentido da vida - narrativa que personaliza quase a bibliografia da autora -, e sua iniciação à mesma, no sentido puro de consumar o entendimento do amor e do viver. Sua aprendizagem propriamente se dará diante de toda a indagação no romance, em existir, o que ela é, e quando há o derradeiro estalo, Lóri é. Deste modo, de dialética imposta e consumada.
Lóri é inclinada ao suspense lógico de pertencer a algo ou alguém; mesmo que ame, não se prende, se desprende de atos idealizados. A ânsia em pertencer ora é clamada, ora exígua. Durante muito tempo em sua existência (e, seu passado é permitido em análise focal para provável entendimento pessoal), a protagonista conhece mundos que irão se tornar desconhecidos em diante: a perda do dinheiro da família, o contato com seus componentes, a erudição burguesa, afastamentos estes que a desmantelarão enquanto buscadora de situações típicas normatizadas como relacionar-se ao outro, e vice versa. Lóri, então, ficará à par desse triunfo sensível ao conhecer Ulisses, personalizado como um homem mais velho, sábio e já iniciado, finalizado. Ele é a idealização do sujeito formado que fará a "educação" apaixonada de sua heroína.
À cata por significados permeia cada linha do texto, páginas recheadas de simbolismos do subsistir, do pensar e da extinção, aqui sob a ótica otimista de Lispector. Lóri, remetendo em si, e evidenciado que há de si em toda pessoa, basicamente, também peregrina na busca sentimental interna uma específica a um ser metodológico, um Deus talvez não divino, já que ela própria o nomeia substantivo, nomeado, precedido de um artigo, o "o", que pode sugerir uma conexão introspectiva, personificada, um quase amigo imaginário diante da figura solitária que ela é, também ele um "homem", o que nos leva a Ulisses, a outra presença masculina, que encarna o ser paciente, que tange à espera esperançada de vê-la concluída nessa busca pessoal e amorosa - enquanto ela se busca; logo, o sexo oposto marca o ponto êxtase, por vezes problemático, mas essencial para a feliz coincidência no amor-afeto que encobre o mundo, ou falta nele. Falta nela, mas vem.
O ápice se dará em seu final, no clímax tal, mas há passagens anteriores, de já lapsos em que Lóri viverá o estalo de iniciação, numa cena bonita, bonita, quando encontra Ulisses e se defronta a ele numa piscina, corpos expostos, corações semiabertos, e um pôr do sol latente sugerindo pulsações, manifestações, vida! Após, sua interação com o mar, que leva e traz, anseia e descansa, no diz e nos tira, mas também renova, tal qual o nosso cíclico plano físico. Signos. Prazeres (antecipando).
No fluxo de consciência típico, Clarice desponta sua personagem não só na enunciação preparatória da dor e delícia em ser, do estar vivo (o que é isso?, parafraseando Lóri) mas garante o prazer, os prazeres, a consumação disto. Ela, atriz de seu tempo, década modernista numa bolha que ainda externa um conservadorismo em voga, revela a transgressão de seu gênero, escrevendo enquanto pertencente a ele, permitindo a exaltação de sua Lóri numa comparação clara, singular, significativa da figura feminina à Natureza, a reprodutora de toda forma viva, de um Ulisses sabido ao teu útero em pulso - não há preocupação da concretude materna, e sim a semiótica feminil cis, afinal, Lóri é. Sempre é.
A jornada, enfim, se concatena a um texto mais facilitado de C.L., porém não menos imersivo, expressivo e relevante, todos sempre o são. O é Lóri, novamente, idem: frisando sempre o objetivo de sua narratologia. Diante da inquietação passada, presente, a transformação dessa terapêutica em palavras abrange e atinge quem se inicia, aprende, se conclui, ou permanece na procura. Ela é. Nós é. Assim disse, assim mesmo, Clarice, eterna esfinge inconclusa a quem o peso de sua escrita nos rechaça do lugar comum a um estado de graça: bom seria tê-lo na permanência da felicidade. Um passo de cada vez.