Vania.Cristina 16/05/2024
Abençoado poder
Esse livro me fez sentir coisas contraditórias. Se por um lado a escrita da autora me encantou com sua beleza e potência, seja pela pesquisa aprofundada, pelo resgate histórico relevante ou pela história impactante, por outro lado achei o texto truncado, principalmente na sua metade final. A emoção segue, à princípio num crescente, depois se esfria, num tom ora distante, jornalístico, ora mágico.
Vejam bem, gostei da leitura e a recomendo, mas não foi apaixonante como, de início, pareceu que seria. Vou tentar fazer aqui uma pequena análise, na tentativa de organizar meu próprio pensamento.
O livro conta a história de duas crianças indígenas brasileiras que existiram de verdade, e foram levadas para a Alemanha no século XIX. Dois cientistas estavam incumbidos, pelo rei alemão, de levar para a Europa espécimes da fauna e flora brasileiras. E um desses homens decide levar crianças das tribos locais.
A protagonista da história é a menina Iñe-e, neta do xamã do povo miranha. Um dia, quando era bem pequena, Iñe-e se perdeu da tribo e foi encontrada junto de uma onça. Ao invés de devorá-la, a fera cuidou da menina até que os homens da tribo viessem resgatá-la.
Para o velho xamã, isso era sinal de um poder abençoado. Ele acreditava que a neta poderia ser, ao crescer, "cuidadora do corpo e da mente" das pessoas. Já o pai de Iñe-e, líder da tribo, via na afinidade da filha com a onça uma maldição e uma traição.
Um dia, dois cientistas europeus chegaram no território miranha. Um deles negociou com o líder que, a pedido do homem, mandou seus guerreiros raptarem crianças das tribos inimigas. Seis crianças foram capturadas. Para agradar ainda mais, o pai de Iñe-e lhe entregou também, como presente, a própria filha.
Dessa forma, o mundo da criança era arrancado totalmente dela, de uma hora para outra: família, amigos, povo, terra, liberdade, cultura, história, língua, nome, identidade...
Na viagem de navio, quase todas as crianças morreram. Só sobreviveram Iñe-e e um menino da tribo juri. Os dois não falavam a mesma língua, mesmo assim se aproximaram como se fossem irmãos.
Na Alemanha, a narrativa foi manipulada pelo agressor: as crianças foram salvas da "barbárie" e trazidas para a "civilização".
Iñe-e nunca mais disse uma palavra sequer. Sua voz era o único tesouro que não podiam arrancar dela.
A menina não era apenas capaz de se comunicar com os animais, ela também podia escutar os rios. E durante a narrativa, os rios falam com ela, lhe contam histórias, segredos... Até mesmo o rio alemão.
A autora trabalhou a história de forma não linear, misturando passado e presente, às vezes no mesmo capítulo. E o arco do passado também não é linear, ele flui ora numa direção, ora noutra.
O arco do presente nos traz outra personagem. Seu nome é Josefa, ela nasceu em Belém do Pará mas mora na Capital de São Paulo. Uma parte de Josefa vem do povo kaiapó. "Todo mundo tem uma avó pega a laço no Brasil."
Josefa tinha muita inquietação dentro dela. Coisas que ela sentia e não sabia como expressar. Até que viu uma exposição na avenida Paulista...
Me envolvi com Iñe-e, mas não consegui me deixar levar por Josefa. Penso que o arco que fala do presente deveria ser aquele com que eu me identificaria. E realmente lá estão fatos atuais importantes que vivenciei. Mas simplesmente não senti envolvimento com a personagem.
O texto oscila entre ficção e jornalismo ou documento. A meu ver, quando segura e contém a ficção, pretende abrir espaço para o pensamento racional, para a reflexão, revelando que o Brasil de hoje não é diferente daquele do passado. Mas, dessa forma, segura também a emoção, e talvez deixe a narrativa menos fluida. Imagino que tenha sido estratégia da autora, mas achei um pouco frustrante.
Em alguns momentos, a história trabalha com imagens mágicas e místicas, retiradas das mitologias de nossos povos originários. Isso também afeta o ritmo. Ou seja: ora é passado, ora é presente, ora é ficção, ora documento, ora história da vida real, ora mito.
O livro é sólido, robusto, mas mantém contida essa emoção que quer gritar, explodir. E o leitor precisa levar isso em consideração. Ao final você sente a dimensão da injustiça, mas a narrativa não lhe permite chorar e extravasar.