O som do rugido da onça

O som do rugido da onça Micheliny Verunschk




Resenhas - O som do rugido da onça


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Leila de Carvalho e Gonçalves 28/03/2021

A Excêntrica Fauna Brasileira
Quando Micheliny Verunschk resolveu visitar a mostra permanente do Itaú Cultural, localizado na cidade de São Paulo, não imaginava que ali encontraria a inspiração para seu quinto livro, O Som Do Rugido Da Onça, vencedor do Prêmio Jabuti e finalista do Oceanos em 2022.

Entre as peças expostas, as litografias de uma menina e de um menino indígenas ? identificados apenas pelos nomes de suas tribos: Miranha e Juri ? impactaram profundamente a escritora, a ponto de envolvê-la numa ampla pesquisa cujas informações remontam a expedição que, organizada pelos cientistas Spix e Martius, chegou ao país em 1817, de carona com a comitiva da princesa Leopoldina.

Eles foram responsáveis pela captura e envio dessas crianças para a Europa, no caso, para a Corte de Maximiano I da Baviera. Apresentadas como curiosidade ? exemplares da nossa ?excêntrica fauna? ? ambas morreram depois de alguns meses devido a baixa imunidade contra ?doenças comuns ao homem branco?, uma condição agravada pelo estresse sofrido desde o afastamento de suas famílias.

O Som do Rugido da Onça é a reconstrução ficcional dessa tragédia a partir de uma das vítimas: a menina miranha cujo verdadeiro nome é desconhecido, mas é tratada como Iñe-e e aqui cabe um aparte, conforme documentos, ela recebeu o batismo e passou a ser chamada de Isabella em solo europeu.

O resultado é um romance histórico original, ?eivado de imperfeição?, contado por entre as rachaduras que lhe permitem enxergar, ou melhor, ?feito planta que rompe a dureza do tijolo, suas raízes caminhando pelo escuro, a força de suas folhas impondo nova paisagem, esta é uma história a procura do sol.?

Paralelamente, alternando diversos planos temporais, esta também é a história de Josefa, uma mulher tentando fugir de um passado incômodo que inclui a própria ascendência. Morando há três anos em São Paulo, desde que chegou de Belém, ela ?segue operando estratégias de apagamento da própria identidade?, até se deparar com os retratos das duas crianças na mesma exposição que inspirou Verunschk, algo que dá uma nova perspectiva para sua vida.

Esse tratamento não linear do tempo evoca impasses que ainda resistem, ao conectar a situação do indígena no século XIX com o panorama atual. Dois bons exemplos são a sistemática tentativa de violação de direitos e a negação do pertencimento cultural, uma conjuntura preocupante pois está associada ao apagamento identitário e até ao extermínio étnico, o fulcro da romance.

Finalmente, outro diferencial está na escolha da condução narrativa que recai sobre o olhar do indígena, trazendo à cena suas lendas, crenças e a cosmogênese, enquanto resgata o vocabulário miranha, juri e nheengatu. Inclusive, Verunschk cria a fala da onça, uma criatura mítica, que chega a assumir a posição de narradora diante de algumas circunstâncias.

?Aniba, aniba, siriganguê!?

Trecho do Livro:
?Iñe-e escutara uma vez as mulheres, sua mãe entre elas, dizendo que o pai pegara a doença dos brancos e que estava se tornando um estrangeiro em sua própria nação. Mas os guerreiros mais velhos e mesmo os jovens pareciam estar todos de acordo com ele, e o povo miranha se congratulava pelas trocas que o chefe se empenhava em realizar. Foi assim que nos últimos tempos as crianças órfãs e mulheres do seu povo haviam virado moeda também, e por isso a mãe e o avô de Iñe-e temiam as visitas dos brancos, especialmente por causa dela, e tentavam escondê-la dos olhos do pai, como se isso o fizesse esquecer de sua existência. Mas todos os esforços se revelaram inúteis. Não havia nenhum esconderijo a seus olhos, nada e nem ninguém que o impedisse.
Uma manhã em que o sol se levantou do mesmo jeito que sempre se levantava, e em que a mata falava sua língua do mesmo modo com que sempre falava, nada denunciava o que estava por acontecer. O pai de Iñe-e e o estrangeiro, que atendia pelo nome de Martius, firmaram acordo sobre a venda de sete crianças. Mas o homem branco deixaria o porto dos Miranhas levando consigo oito vidas. Iñe-e lhe fora dada como presente.? ?

Nota: Adquiri o e-book e recomendo.
Lizziane 25/11/2022minha estante
Uau! Que resenha! Fiquei com vontade de ler.


joedsonfrl 01/01/2023minha estante
Muito lindo seu texto, Leila!
Comecei a ler hoje! :)


Daniele.Fernandes 16/04/2024minha estante
Um livro diferente, um tanto complexo, mas de uma força lírica inquestionável, de uma beleza, de um refinamento que nos assombra! Ele vai nos conquistando e, no fim, ficamos íntimos da onça que habita em nós! Senti vontade de me fugir da cidade e caminhar descalça na mata. Um livro que mexe com algo muito instintintivo dentro de nós e deixa muitas reflexões necessárias.




Ana Sá 06/03/2023

Um experimento que deu certo ou um novo capítulo na ficção sobre indígenas brasileiros
Acho que este foi dos livros mais complexos e inovadores que li nos últimos tempos, então senta que lá vem resenha (sério, pode pegar o cafezinho que essa resenha vai até de manhã!)...

"A intenção era que a Europa pudesse admirar aquele deslumbre de vida que há muito perdera. A Europa era velha, reumática, quiça sofrendo alguma moléstia cancerosa. E aquilo que os cientistas traziam consigo [as duas crianças] era uma promessa, uma fonte de juventude, novíssima pedra filosofal".

Premiado e aclamado pela crítica, "O som do rugido da onça", de Micheliny Verunschk, baseia-se em fatos reais para narrar a história de duas crianças indígenas raptadas no Brasil e levadas a Alemanha no século XIX. É sobretudo através da percepção da pequena Iñe-e que as leitoras têm acesso a essa violência concreta e simbólica autorizada pela lógica colonial. Trata-se de um rapto que metaforiza todo o apagamento e o silenciamento sofridos pelos povos originários brasileiros, entrelaçando passado e presente num tecido composto por diferentes gêneros textuais. Narrativa ficcional, fragmentos de documentos históricos, manchetes de jornais. A leitura é exigente mas presenteia a leitora com uma proposta literária no mínimo intrigante.

Antes de abordar aspectos da narrativa em si, é inevitável fazer comentários sobre a própria questão da autoria. Numa altura em que as literaturas indígenas ganham força no Brasil, "O som do rugido da onça" chama a atenção ao apresentar uma voz narrativa indígena que nasce da caneta de uma escritora que não se declara/reconhece como tal. E por isso é de se entender quem sinta inicialmente uma inquietação do tipo "o que essa cara pálida tá querendo, hein?".

A partir de uma interpretação rasa de "lugar de fala", Micheliny Verunschk estaria a priori condenada. E não digo que este debate da autoria não seja válido, sobretudo ao se ter em vista que a literatura indianista brasileira (isto é, a literatura escrita por não indígenas) é bastante marcada pela idealização e/ou estereotipização desses povos, sobretudo, como eu disse, por estarmos num momento de evidência da autoria indígena. Os tempos são outros, e a literatura brasileira não é mais refém do indígena como personagem pois nossas bibliotecas já podem ser preenchidas com o indígena escritor. E eis então que um dos livros mais premiados e aclamados de 2022 bagunça essa tendência ao retornar ao indígena ficcionalizado por uma autora "cara pálida". E agora? "Que coisa mais século XIX", alguns podem pensar. Seria o cas... Seria esse o caso se não fosse como foi. A meu ver, Verunschk entrega um livro que é todinho século XXI, que, longe de retornar à fórmula dos velhos indianistas, oferece, talvez, uma nova página à historiografia literária nacional, com um romance pluritextual e polifônico.

Recorrendo a uma interpretação séria de "lugar de fala", entende-se hoje que não se trata de determinar quem pode ou não falar sobre determinado assunto, mas de reconhecer que todas as pessoas, sem exceção, falam de algum lugar. E Micheliny Verunschk parece conhecer como ninguém seu lugar, e por isso constrói um romance original a partir dele. Ela não tenta ser a escritora "branca" que vai falar "pelos" indígenas. Ela é uma escritora para quem tal temática serve à construção de um universo ficcional-histórico-antropológico nada caricatural ou plástico, mas sim respeitosa e inteligentemente verossímil. Não por acaso, ela é também historiadora e crítica literária. E esse seu "lugar de fala" salta aos olhos dos especialistas e dos leigos, pois o romance é, afinal, histórico, antropológico, social. Para alguns, ele pode até ser visto como uma obra acadêmica demais ou simplesmente como um livro chato, pois os fatos pesam mais do que a ficção em algumas passagens. Não bastasse, Verunschk opta por uma escrita fragmentária, não linear (nem em tempo, nem em voz, nem em gêneros textuais), levando as leitoras ao sentimento de "que confusão" em determinados momentos. Mas digo sem medo: nada que uma leitura paciente não resolva! Os fios aqui vão se cruzando devagar, pois precisamos de tempo para nos acostumarmos com o que nos é proposto.

Micheliny Verunschk experimentou juntar academicismo com lirismo. A meu ver, deu muito certo, o que é raro! Em seu livro, teorias contemporâneas das Ciências Sociais e fatos históricos de diferentes períodos encenam uma dança com a história ficcionalizada das crianças Iñe-e e Juri. Confesso que eu queria ter me envolvido mais emocionalmente com a obra, mas meu fascínio pelo modo como esses conteúdos "acadêmicos" foram se transformando em prosa acabou por tornar a minha leitura um tanto técnica. Ainda assim, sou também testemunha de que há beleza, e não apenas informação na narrativa. Nos países pelos quais as crianças passam os rios-personagens ganham protagonismo, o que prende a leitora. Aliás, em geral, o trabalho com a cosmovisão indígena dá forma a belas imagens. Há também uma terceira personagem, Josefa, responsável por fazer o gancho narrativo com o presente, que começa sem graça e termina de uma forma muito interessante!

Apesar de todos os elogios, eu não dei cinco estrelas pois vi excessos nessa presença de dados/referências históricas/acadêmicas. Dizer que o livro é inovador não significa dizer que ele é perfeito. Por vezes, essa estratégia de conciliar academia e literatura culminou em quebra narrativa, mas nada grave se considerarmos o tamanho do desafio que Micheliny Verunschk se propôs a enfrentar. Dá-lhe quatro estrelas bem reluzentes!

Se alguém quiser uma sugestão: um dos livros da minha vida é o "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa (já tem resenha dele aqui); para quem tiver fôlego, vale muito a pena conjugar as duas leituras. É evidente a influência que o livro do Kopenawa tem na escrita de Verunschk (inclusive "A Queda do Céu" chega a ser citado numa epígrafe). Com essa dobradinha literária, percebe-se muito melhor as nuances dessa passagem do indígena autor pra um indígena personagem que é bem trabalhado. Sob esse prisma, considero que o livro de Micheliny Verunschk acaba por ser também uma homenagem às literaturas indígenas propriamente ditas.
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Rosangela Max 12/04/2024

Escrita complexa para retratar problemas perpetuados.
O lirismo empregado na história pode até ter embelezado algumas passagens, porém, não tornou a escrita fluida. Em alguns momentos, senti a necessidade de reler várias vezes o mesmo parágrafo para garantir o entendimento. Mesmo assim, acredito que não consegui 100%. Mas a mensagem principal foi passada e ela é triste: A selvageria dos ditos ?civilizados?.
Recomendo a leitura.
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Vania.Cristina 16/05/2024

Abençoado poder
Esse livro me fez sentir coisas contraditórias. Se por um lado a escrita da autora me encantou com sua beleza e potência, seja pela pesquisa aprofundada, pelo resgate histórico relevante ou pela história impactante, por outro lado achei o texto truncado, principalmente na sua metade final. A emoção segue, à princípio num crescente, depois se esfria, num tom ora distante, jornalístico, ora mágico.

Vejam bem, gostei da leitura e a recomendo, mas não foi apaixonante como, de início, pareceu que seria. Vou tentar fazer aqui uma pequena análise, na tentativa de organizar meu próprio pensamento.

O livro conta a história de duas crianças indígenas brasileiras que existiram de verdade, e foram levadas para a Alemanha no século XIX. Dois cientistas estavam incumbidos, pelo rei alemão, de levar para a Europa espécimes da fauna e flora brasileiras. E um desses homens decide levar crianças das tribos locais.

A protagonista da história é a menina Iñe-e, neta do xamã do povo miranha. Um dia, quando era bem pequena, Iñe-e se perdeu da tribo e foi encontrada junto de uma onça. Ao invés de devorá-la, a fera cuidou da menina até que os homens da tribo viessem resgatá-la.

Para o velho xamã, isso era sinal de um poder abençoado. Ele acreditava que a neta poderia ser, ao crescer, "cuidadora do corpo e da mente" das pessoas. Já o pai de Iñe-e, líder da tribo, via na afinidade da filha com a onça uma maldição e uma traição.

Um dia, dois cientistas europeus chegaram no território miranha. Um deles negociou com o líder que, a pedido do homem, mandou seus guerreiros raptarem crianças das tribos inimigas. Seis crianças foram capturadas. Para agradar ainda mais, o pai de Iñe-e lhe entregou também, como presente, a própria filha.

Dessa forma, o mundo da criança era arrancado totalmente dela, de uma hora para outra: família, amigos, povo, terra, liberdade, cultura, história, língua, nome, identidade...

Na viagem de navio, quase todas as crianças morreram. Só sobreviveram Iñe-e e um menino da tribo juri. Os dois não falavam a mesma língua, mesmo assim se aproximaram como se fossem irmãos.

Na Alemanha, a narrativa foi manipulada pelo agressor: as crianças foram salvas da "barbárie" e trazidas para a "civilização".

Iñe-e nunca mais disse uma palavra sequer. Sua voz era o único tesouro que não podiam arrancar dela.

A menina não era apenas capaz de se comunicar com os animais, ela também podia escutar os rios. E durante a narrativa, os rios falam com ela, lhe contam histórias, segredos... Até mesmo o rio alemão.

A autora trabalhou a história de forma não linear, misturando passado e presente, às vezes no mesmo capítulo. E o arco do passado também não é linear, ele flui ora numa direção, ora noutra.

O arco do presente nos traz outra personagem. Seu nome é Josefa, ela nasceu em Belém do Pará mas mora na Capital de São Paulo. Uma parte de Josefa vem do povo kaiapó. "Todo mundo tem uma avó pega a laço no Brasil."

Josefa tinha muita inquietação dentro dela. Coisas que ela sentia e não sabia como expressar. Até que viu uma exposição na avenida Paulista...

Me envolvi com Iñe-e, mas não consegui me deixar levar por Josefa. Penso que o arco que fala do presente deveria ser aquele com que eu me identificaria. E realmente lá estão fatos atuais importantes que vivenciei. Mas simplesmente não senti envolvimento com a personagem.

O texto oscila entre ficção e jornalismo ou documento. A meu ver, quando segura e contém a ficção, pretende abrir espaço para o pensamento racional, para a reflexão, revelando que o Brasil de hoje não é diferente daquele do passado. Mas, dessa forma, segura também a emoção, e talvez deixe a narrativa menos fluida. Imagino que tenha sido estratégia da autora, mas achei um pouco frustrante.

Em alguns momentos, a história trabalha com imagens mágicas e místicas, retiradas das mitologias de nossos povos originários. Isso também afeta o ritmo. Ou seja: ora é passado, ora é presente, ora é ficção, ora documento, ora história da vida real, ora mito.

O livro é sólido, robusto, mas mantém contida essa emoção que quer gritar, explodir. E o leitor precisa levar isso em consideração. Ao final você sente a dimensão da injustiça, mas a narrativa não lhe permite chorar e extravasar.
Carla.Floores 16/05/2024minha estante
Belíssima resenha, como sempre, Vânia! Curiosamente li uma manchete sobre isso hoje no site da bbc Brasil.


Vania.Cristina 16/05/2024minha estante
Sobre esse caso das crianças, Carla?


Vania.Cristina 16/05/2024minha estante
Obrigada, querida ?


Carla.Floores 16/05/2024minha estante
Sim. A manchete é "O rapto de crianças indígenas por cientistas alemães em expedição pelo Brasil no século 19."
Não sei se adianta de algo mas eis o link: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cll4zdq3n00o
Nele é citado esse livro.


Vania.Cristina 16/05/2024minha estante
Obrigada Carla!!!


debora-leao 17/05/2024minha estante
Descrição linda! Também senti isso com o livro mais recente dela. Não li esse. Senti que a emoção fica contida, o corte é seco entre as configurações emocionais apresentadas na ficção e no documental. Isso faz com que o leitor acabe engarrafando a emoção. Foi legal ver sua resenha sobre esse livro, ajustei minhas expectativas, pq ainda pretendo lê-lo, eventualmente.


Vania.Cristina 17/05/2024minha estante
Debora, se puder leia e venha nos contar suas impressões. Não me arrependi nem um pouco de ter feito a leitura, é um livro importante, não só por ter ganhado o jabuti mas pelo tema que apresenta.




Del 18/01/2024

Confesso que fui totalmente surpreendido com esse livro. Esperava encontrar algo totalmente diferente do que aqui encontrei.

O mais chocante de tudo é descobrir que de fato parte do cinteúdo desse livro de fato aconteceu. O absurdo rapto de duas crianças indígenas no século XIX por dois cientistas europeus, tratados como suviners e entregues de presente ao rei. E claro que nada disso poderia ter um fim agradável.

Há um enorme trabalho de pesquisa da autora pra levantar dados, documentos, entrevistas, reportagens e mais fascinante de tudo, a cosmovisão de diversas povos indígenas assim como lendas, costumes e vocabulário.

Infelizmente a escolha da narrativa não linear não funcionou um pouco pra mim no início o que me fez demorar um pouco a mergulhar de vez na história.
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Toni 04/05/2021

Leitura 30 de 2021

O som do rugido da onça* [2021]
Micheliny Verunschk (PE, 1972-)
Cia. das Letras, 2021, 168 p.

Diferente do que acontece com a história, o compromisso da ficção não se encontra no documento ou nos eventos ditos históricos. A literatura está comprometida com a experiência humana, e esta não cabe em caixinhas, por mais que a queiram assim os defensores do “progresso” capitalista, da heteronormatividade, do machismo e da preservação do status quo. Seria muito mais válido, portanto, afirmar que escritores não escrevem romances históricos, mas romances nas lacunas da história, como disse certa vez Saramago, afirmação que, longe de ser dogmática, nos convida a perceber O som do rugido da onça como um espaço narrativo entre vários lugares: ético, reparador, fabular, político, polifônico, decolonial.

Micheliny Verunschk, exímia contadora de histórias, desta vez parte de um fato histórico: a expedição dos naturalistas Spix e Martius ao Brasil entre 1817 e 1820 que se encerrou com o sequestro de 8 crianças indígenas, das quais apenas duas sobreviveram à travessia do Atlântico. Ciente de que a narrativa dos vencedores documenta apenas um “desejo de verdade”, Verunschk faz uso das vozes silenciadas e despersonalizadas pela História maiúscula para construir outra cosmogonia do narrar, escutando as forças da natureza e criando uma dicção ancestral que toma emprestada nossa língua apenas “porque é com ela que se faz possível ferir melhor”.

Iñe-e, a indígena levada a Munique à força com pouco menos de 14 anos, é o fio condutor do romance, mas o que se conta aqui é a história de um genocídio ainda em andamento, do apagamento de visões de mundo, da sobrevivência de povos originários em costante embate com a empáfia e a ganância dos homens. Por meio dos olhos de Iñe-e, aprendemos que a literatura também pode ver o espírito das coisas, e nos lembrar do quão triste se torna um povo que perde a capacidade de se conceber em conexão com a terra. Melancólico e doloroso, O som do rugido da onça precisa ser ouvido por todas e todos. Torço por um ano de muitas premiações para esta querida escritora.

* Livro recebido como cortesia da @companhiadasletras .
João Pedro 04/05/2021minha estante
Excelente resenha! Fiquei curioso com o que seria "decolonial" e fui pesquisar. Muito interessante!


Toni 04/05/2021minha estante
Obrigado. =D




Alice1768 06/02/2024

Um conexão com a nossa terra
É estranho ler um romance que fala sobre as barbaridades que fizeram com o povo originário mas a autora fez isso da melhor forma. Sempre mostrando a força e a garra que eles tem junto da natureza. É uma ótima forma de lembrar com o que fizeram com os nossos e continuar defendendo os seus direitos.
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Marcio.Rocha 11/02/2024

Maravilhoso, mas doloroso
O Som do Rugido da Onça é pesado, mas curiosamente é bom de ler; carece de atenção por ter uma estrutura um pouco diferente, mas contraditoriamente é fácil de ler. É um livro profundo, maravilhoso e triste.
Recomendo demais!
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diliterando 03/05/2023

????
" Sente terrível falta da maloca, do cotidiano que havia sido partido como um galho na tempestade e, principalmente, da pele morna da mãe. Um buraco claro como um relâmpago se abre dentro dela e cresce."
.
É incontestável o mérito desse livro como ganhador do prêmio Jabuti 2022. É uma narrativa própria e diferente. A literatura ?? me rendendo agradáveis surpresas.
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Temos um relato real, fictício e poético. Palavra animalescas são devoradas como uma onça ? em fúria suja de sangue derramado pelos indígenas em uma triste realidade do Brasil Colonial. Sobra um gosto amargo na boca em meio às atrocidades cometidas a quem já estava nessas terras.
O grande diferencial é como a autora apresenta essa história. Ela ameniza e impõe em uma escrita única, sensível e metafórica. Com um vocabulário próprio, misturando diferentes línguas indígenas, palavras criadas e português antigo. (Lindo e enriquecedor na leitura).
Em 1817, Spix e Martius desembarcam no Brasil para registrar as impressões sobre o país. Depois de 3 anos eles voltam para Munique na Europa com extenso relato e para surpresa de todos com 02 índios de 14 e 12 anos de tipos diferentes.  O menino Juri + manso e amigável e a menina Iñe-e selvagem, arredia e primitiva.
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" Antes de ser vendida e levada embora, Iñe-e deslizava pelas águas dos rios como quem vive."
Os 2 arrancados de sua terra Natal, seu povo e sua naturalidade. Chegam em solo Europeu e não muito tempo viveram, os 2 morreram de doença e enfermidades. Todavia esse índios já estavam mortos desde o dia que sofreram um falecimento interno no desaparecimento e distanciamento de seu povo e suas terras.
" Era um menino forte. E talvez por isso mesmo tenha sobrevivido aos dias que passaram sobre o mar. Iñe-e também o era, e em seus corpos essa força se inscrevia como a história de seus povos."
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O livro é um guardião da memória desse passado obscuro e cruel. Do que aconteceu e ainda hoje acontece com índios. Uma arte literária da atualidade que precisa ser indicado para todos.
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Thaiza.Vianna 31/12/2023

Fábula e realismo
Esse livro me deu uma vontade enorme de buscar mais livros nesse tema!
O pano de fundo lindíssimo sobre a crueldade na época da colonização, contando sobre a história real de duas crianças indígenas levadas a Munique pelos exploradores, que vinham fazer suas trocas e aprender sobre espécimes de plantas das novas terras.
E assim eles também os levaram, na época visto como heróis na Europa, o pensamento que estariam salvando essas crianças de um estilo de vida selvagem para o "mundo civilizado", sem perceber a tristeza de afasta-los de suas famílias, de sua cultura, de seu modo de vida e levando para a morte prematura, ao querer fazer exposições ao povo europeu, onde tinham outro clima e contatos com doenças de um outro continente.
O livro também faz uma viagem ao século atual, contado através de outra personagem que no meu ponto de vista não precisaria ser trabalhado, mas que consegue se reconhecer descendente do nosso passado indígena, mesmo depois de tanta miscigenação e se solidarizando com as crianças que foram levadas.
A narrativa tem uma enorme carga lírica, principalmente no terço final, onde a narrativa de forma lúdica é travada pela onça onde sobrepõe à cultura indígena.
É um livro muito bonito, com certeza ganhou muitos corações além do prêmio Jabuti, mas que pra mim não foi tão fluida quanto gostaria. Mas com certeza vale a leitura
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M. S. Rossetti 28/11/2022

Romance Literário vencedor do Jabuti 2022
A leitura deste romance foi um grande desafio pessoal. Desafio esse somente comparado aos romances indianistas de José de Alencar (estudados em Literatura do Ensino Médio).
Na completa ausência de um herói nacional (no passado e também na atualidade), fica a impressão de que a autora buscou novamente essa figura mítica na trama narrada.
Algumas características do romance indianista estão presentes, tais como: nacionalismo; estética nativista; exaltação da natureza; idealização do índio como figura nacional; tema histórico; resgate de lendas; bem como contato do índio com o europeu colonizador.
Acredito que a sensação de complexidade na leitura não será somente minha. Isso é sinal de que a abordagem do tema precisa ser recorrente em novas obras da literatura nacional contemporânea.
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Evy 29/06/2021

"Só quem está vivo consegue escutar a voz do mundo"

O que se conta nesse livro realmente aconteceu. O zoólogo Spix e o botânico Martius fizeram várias incursões pelo território brasileiro no início do século XIX. Estudaram nossas espécies de plantas e animais e são eles os responsáveis pela divisão do nosso território em cinco biomas, os quais usamos até hoje: cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e pampas.

São vistos como heróis, como muitos outros cientistas da época. Mas então, Micheliny traz a história das crianças indígenas que foram "compradas" por Martius e Spix e nos faz ver tudo pelos olhos delas, em especial da menina Iñe-e do povo Miranha. E esse olhar é de uma tristeza que não tem nome, não tem tamanho.

A narrativa da autora é sensacional, muito bem desenvolvida e emocional. O que me baqueou muito nessa leitura foi a cultura européia se impondo sobre a cultura indígena de uma forma opressora e o quanto ainda existe desses pensamentos até hoje. A visão que as pessoas tem dos índios, como animais selvagens que não pensam e não sentem e o fato de terem a certeza de que estão "salvando" as crianças dessa vida selvagem é um absurdo.

A forma como a autora mescla o fantástico e o real, as crenças indígenas e a dureza humana civilizada, o passado e o presente, é genial e muito diferenciada, as vezes nos arranca de suas descrições fantásticas com um soco de realidade no estômago: "como pode ser bom alguém que compra outras pessoas?", "sentia que morria em cada morte que testemunhava", "cada construção ali fora erguida sobre sangue inocente", "dois rostos sem corpo, dois nomes sem história", "construindo uma desidentidade".

Dói. Mas é ainda pior como a gente se encontra dentro da narrativa, caracterizados por personagens que agem com indiferença a atos impensáveis e faz julgamentos sobre a forma certa de viver, a mais racional, como a Rainha que "adota" as crianças indígenas, as batiza e um dia observando seus filhos felizes e as duas crianças vazias, começa a se sentir uma ladra, embora afaste logo o pensamento incômodo.

É um livro simplesmente sensacional, maravilhoso, extremamente necessário e que traz um olhar que talvez jamais alcançaríamos sem essa narrativa forte e espetacular.

Super recomendo a leitura!
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Vinicius 18/09/2021

Um ponto de vista necessário
É comum vermos na literatura nacional contemporânea uma preocupação em dar vozes às injustiças históricas. Essa perspectiva do lado do oprimido se faz necessária e muitos autores tem cumprido essa função de forma muito bela.

Mesmo sabendo que a história foi baseada em fatos que ocorreram no séc. XIX, apenas procurei no Google imagens das crianças após o término do livro. E que impacto isso teve! Mergulhar no olhar de Iñe-e, imaginar sua tristeza e seu desespero ao se despedir do mundo que conhecia, o único mundo possível para ela, é uma angústia compartilhada.

Existe uma mistura de estilos, narradores, tempos narrativos e isso pode não agradar a todos os leitores. Eu achei que a narrativa do tempo presente não ficou tão conectada com o restante da trama, um clichê que não era necessário. O meu ritmo de leitura foi mais lento por isso tudo, mas também acabei respeitando esse tempo que a história precisava pra ser digerida.

O realismo fantástico, a cosmologia indígena e as cenas com a mãe e o avô são lindas! Ainda que tarde, que sejam dadas voz e garras à Iñe-e.

"Ela não sabia se gostava de ter sido onçada por Tipai uu, mas em seu coração sabia que, por outro lado, não desgostava".

"Pode me chamar de água. E água é tudo e está em tudo que compõe este mundo. Aqui, neste lugar, me chamam Isar, Isar Fluss. [...] Mas de fato pouco importa o nome que me dão, porque Eu sou".
Marcelo 19/09/2021minha estante
Está na minha lista?


Vinicius 19/09/2021minha estante
Acho que vai gostar!




olivropravoce 11/02/2023

Linguagem, personagens e temática incríveis
Nunca havia lido um texto ficcional indígena. Não reconheci inúmeras palavras usadas na obra - que privilégio. O livro me tirou do lugar comum de pensar a partir de uma perspectiva antropocêntrica e eurocêntrica. As crianças indígenas raptadas são vítimas, mas as mortes de seus corpos não retiram da vida seus espíritos. Iñe-e, Miranha, Isabella, Uaara-Iñe-e descobre o mundo da floresta e dos homens brancos com o leitor. A conexão entre a natureza e o humano que a respeita está presente em uma obra que tem como compromisso honrar o povo indígena, não o povo branco, que majoritariamente irá lê-la, que fantástico. Linguagem que emula falares e faz referências às lendas indígenas. Narrativa fluida, porém há inúmeros narradores. A narrativa nos faz repensar o nosso contato com a natureza e nos faz questionar o quão necessário é esse som do rugido da onça, que romperá as amarras que prendem os fantasmas do nosso povo ao lugar além mar.
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